“Ser velho não é uma doença, mas uma fase do curso de vida”, diz antropóloga

A antropóloga Andrea Lopes estuda a velhice e o envelhecimento no Brasil, há mais de 20 anos. Doutora em Educação e Gerontologia pela Unicamp, a pesquisadora atua como professora do curso de Gerontologia da Universidade de São Paulo (USP). Ela acredita que o mito da eterna juventude é um produto de mercado e que é necessário entender a velhice como uma fase da vida, com suas perdas e ganhos como qualquer outra fase.

Leia a seguir a entrevista com a pesquisadora sobre a percepção da velhice e do envelhecimento no Brasil:

1) A população brasileira está envelhecendo, conforme mostraram os dados do Censo 2010 divulgados pelo IBGE. Como o envelhecimento e a velhice são compreendidos pela população?

O envelhecimento e a velhice tornaram-se temas de atenção pública no Brasil especialmente a partir da segunda metade do século passado. Apesar dessa visibilidade cada vez mais presente no Brasil no que tange essa população, ainda muito precisa ser feito em termos de legitimar a heterogeneidade da velhice e do processo de envelhecimento.

Não existem no Brasil apenas velhos acamados e dependentes ou apenas velhos ativos e independentes, que são mais percebidos como parte da terceira idade do que propriamente a velhice. Deve-se ressaltar que velhos no Brasil são as pessoas com 60 anos ou mais e não há vergonha nenhuma em se conquistar mais uma fase da vida.

Precisamos, como população e nação, observar e propor tipos específicos de atenção e oportunidades sociais que contribuam para a gama de possibilidades e realidades em torno do envelhecimento. Não há receitas para envelhecer, mas configurações que devem ser compreendidas e atendidas.  

2) Como os brasileiros podem se preparar para essa nova situação?

O Brasil já tem propostas legislativas muito interessantes em torno da velhice, por exemplo, do Sistema Único de Saúde (SUS) e Sistema Único de Assistência Social (SUAS), mas precisa concretizar essas propostas e monitorar com mais efetividade as iniciativas já vigentes.

Hoje já é possível ver com mais freqüência famílias onde duas ou até três gerações de idosos convivem juntas. O maior aumento entre idosos são os idosos octogenários, que requerem uma atenção mais específica. A atuação em torno da velhice precisa atender mais que o idoso, precisa atender as famílias, a comunidade, a mídia, as ruas, o trânsito, a economia.  

As pessoas e governos precisam atuar ao longo do processo de envelhecimento, preparando a sociedade e as pessoas para a velhice. Também precisamos atuar na própria velhice, criando e ofertando novos papéis e espaços de socialização significativos que gerem oportunidades de desenvolvimento para um grupo etário que vai viver quase 30 anos na condição de velhos.

3) Qual deve ser a preparação das famílias para cuidar deste público? Quando essa preparação deve começar?

A família mudou e, por isso, pensar apenas na família como eixo central no cuidado e atenção a velhice é um erro. Sobrecarregar a família não contribuiu para a busca de soluções ou formas de atenção. A atuação junto à velhice deve ser em rede, incluindo o apoio e orientação aos familiares e a comunidade, disponibilizando profissionais especializados, espaços de socialização e inclusão.

As pesquisas mostram que hoje muitos idosos são chefes de família, e passaram de assistidos para assistentes. Em muitas regiões do Brasil os Benefícios de Prestação Continuada e a aposentadoria rural vêm sustentando três gerações.

A preparação para a velhice deve se dar ao longo de todo o processo de envelhecimento, especialmente na atenção à saúde, a socialização e ao desenvolvimento. Esse deve ser um projeto de nação, não um projeto individual ou familiar.

4) Quais as mudanças estruturais que podem ocorrer na sociedade com esse aumento da faixa etária. Existe, por exemplo, a perspectiva de alteração na idade de aposentadoria, na prestação de serviços específicos e até mesmo na idade de entrada no mercado de trabalho?

Penso ser difícil prever o futuro, mas entendo que as mudanças em torno da população brasileira, cada vez mais envelhecida, estão diretamente ligadas a capacidade de o Brasil entender-se como mais velho. Ainda reina no país a idéia geral que somos um país jovem e, entre as pessoas, que podemos postergar a velhice.

Nunca na história da espécie humana viveu-se tanto, mas a discussão que fazemos em Gerontologia – o campo científico que estuda a velhice e o envelhecimento – é que ainda não sabemos o que fazer com todos esses anos, em termos de qualidade e oportunidades sociais e pessoais de contínuo desenvolvimento pessoal. 

O aumento da expectativa de vida pode ser uma oportunidade, se assim nos prepararmos e entendermos. Esse investimento não pode esperar mais. Se mudanças de várias naturezas serão necessárias, isso será uma decisão da população brasileira, que a meu ver, ainda não  tem claro que pode viver tanto e que a qualidade dessa vida dependerá do que fizermos agora como cidadãos de todas as idades.

5) Com base na experiência de outros países, quais políticas públicas devem ser
adotadas a longo prazo para oferecer condições de atendimento para esta parcela da população?

Como antropóloga não entendo que precisamos necessariamente buscar em outros países respostas para nossos problemas e questões internas. Nós precisamos investir em pesquisa, abrir novas frentes de trabalho, mais criativas e propositivas. 

O mundo, de maneira geral, ainda não sabe o que fazer com seus idosos. Essa realidade está presente em países das mais diversas condições econômicas. Na Europa, por exemplo, sabe-se que ainda idosos que moram sozinhos são encontrados mortos depois de dias. Em outros países há graves problemas de moradias para essa população.

Por exemplo, eu tenho investigado o trabalho voluntário formal feito por idosos brasileiros, japoneses e americanos. O que meus estudos e pesquisas internacionais têm mostrado é que esse tipo de engajamento social, tão promovido por agências internacionais envolvidas com a temática da velhice, é em geral exercido por um grupo específico de idosos: mulheres brancas, bom nível educacional e de renda, com círculo familiar e de amigos/conhecidos forte e presente, com boa saúde física e emocional e que já possuem uma vida ativa. 

Então, como possibilitamos engajamento social e contínua produção de sentido de vida a outros tantos perfis de idosos brasileiros, que são a maioria, proporcionando igualmente bem-estar e possibilidades de desenvolvimento e socialização,  tal como visto entre idosos que podem envolver-se em trabalho voluntário formal?    Será o trabalho voluntário formal, tal como organizado hoje, uma alternativa de inclusão de idosos brasileiros a ser priorizado pelas políticas públicas, tal como vemos em alguns países? O Terceiro Setor brasileiro está, em geral, preparado para recrutar, selecionar, treinar e supervisionar idosos voluntários?

6) Existe diferença entre os valores atribuídos à velhice no Brasil e em outros
países ou culturas?

Se considerarmos que a velhice é socialmente construída, devemos ter reservas ao falar da experiência mundial. O que percebo, e são apenas impressões de pesquisa e de 20 anos de Gerontologia, é que as pessoas em geral ainda dividem a velhice em saudáveis-independentes-ativos e doentes-dependentes-inativos. Essas imagens bipolarizadas mascaram a diversidade das experiências de ser idoso e homogeneízam a velhice.  Em suma, se há diferenças, isso eu tenho claro, mas se há semelhanças, penso que essa tendência é uma delas.  

7) A própria mídia e até certo ponto a arte tende a valorizar a juventude nesta
época. Isso tende a se modificar com a mudança na pirâmide etária brasileira?

A revolução etária iniciada no Brasil na segunda metade do século XX, por bem ou por mal, vai trazer mudanças na nossa constituição e organização como espécie. Há agentes sociais e profissionais privilegiados atualmente na construção de um debate saudável, orientado e bem-intencionado em torno do tema da velhice e do envelhecimento, como por exemplo, as pessoas com diferentes níveis de formação em Gerontologia e Geriatria.

Penso que quanto mais termos clareza e consciência etária, maiores serão as chances de promoção de bem-estar individual e coletivo em todas as idades. Evitar a velhice exaltando o mito da juventude eterna só nos  tira o foco do que deve ser feito para todas as idades, condições e demandas.

O mito da eterna juventude já foi e ainda é um produto de mercado. Se ganha muito em torno de tratamento diversos, como se a velhice pudesse ser evitada ou tratada. Ser velho não é uma doença, mas uma fase do curso de vida, composta por perdas e ganhos, como qualquer outra idade. Basta sabermos como equalizar essa balança.