‘Desafio é sustentar novas estruturas’, diz Ana Moser sobre o legado do Rio-2016

O adeus de Ana Moser às quadras de vôlei, em 1999, representou o fim de uma vitoriosa carreira e o início de uma intensa luta social por meio do esporte. A ex-atleta ajudou na criação da Rede de Esporte para Mudança Social, está à frente do Instituto Esporte & Educação e do movimento Atletas pelo Brasil. Além da difusão da filosofia “esporte para todos”, ela também batalha pela transparência no setor de alto rendimento e pela melhoria na política esportiva do País.

Em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada nesta segunda-feira, Ana Moser avalia a preparação do Brasil para os Jogos Olímpicos de 2016, fala sobre a dificuldade de engajamento político dos atletas em atividade e ainda esclarece a polêmica em torno de seu convite para a presidência da Autoridade Pública Olímpica (APO), órgão que tem o papel de unificar os trabalhos da União, do governo estadual e da prefeitura do Rio na preparação olímpica.

Estadão – O que você acha da preparação do Brasil para a Olimpíada?

Ana Moser – Não é um empreendimento simples, é muito complexo. Mas eu tenho confiança que se entregue esse evento da melhor maneira possível. Acho que o Rio de Janeiro está ganhando muito em termos de estruturação, além da visibilidade. As equipes olímpicas das modalidades nunca foram tão bem preparadas e isso deve resultar no melhor desempenho da história da participação do Brasil.

Estadão –Para você, qual será o legado?

Ana Moser – Tem um pouco em tudo. Terá bastante impacto na área de alto rendimento em termos de estruturação, das confederações e das equipes olímpicas. O desafio é como sustentar as novas estruturas, esse nível de remuneração e os centros de treinamentos. Vários municípios estão inaugurando centros de estruturas públicas que ainda não têm um modelo de manutenção claro. Da mesma maneira as instalações olímpicas, quem cuida disso depois? Quem monta e desmonta as estruturas temporárias? No custo-benefício pode ser que a conta não seja tão boa. Nas áreas para pessoas “comuns”, de uma maneira geral, também têm legado positivo. Mais empresas estão olhando para o esporte como responsabilidade social, existe uma consciência das pessoas com atividade física e começa a aumentar a demanda. O poder público tem de começar a entregar serviços. É sempre um custo muito alto, o investimento nesses grandes eventos é estratosférico em termos comparativos com outras áreas do próprio esporte. Os grandes eventos elevam o volume de recursos aplicados ao esporte. É lógico que esse acréscimo se concentra no alto rendimento. Depois que passa essa bolha, o recurso não volta ao que era antes dos grandes eventos, mas existe um legado orçamentário.

Estadão –Você acha que deixamos passar algumas oportunidades?

Ana Moser – Muitas. A gente não tem nada em termos estruturais, temos vontade e consciência. Você vai para as capitais e vê alguns avanços, mas, se a gente falar em melhorar o esporte na escola para todos os alunos e não só para alguns, estamos longe de ver isso concreto. O discurso de que a Olimpíada ia deixar um legado para a população já tem mais de dez anos e agora ainda estamos no discurso. Estamos no primeiro passo, mas para o discurso virar uma proposta estruturada na forma de sistema e depois ter impacto na ponta, a gente tinha de ter começado isso lá atrás para hoje estarmos efetivamente com programas acontecendo em maior escala. Quando passar a Olimpíada, esse tema esporte acabou. Se já tivéssemos ampliado a nossa cultura de prática esportiva, o retrocesso seria mais difícil. A gente ainda está na fase de sensibilização e não de manutenção ou de investimento para desenvolver uma cultura de prática. Perdemos muito tempo.

Estadão –Como tem sido sua relação com o ministro George Hilton?

Ana Moser – O Ministério do Esporte está dando vazão a questões que estão sendo discutidas há muito tempo. Foram três conferências. A primeira definiu uma política, a segunda definiu uma estrutura de sistema e a terceira fez uma tentativa de construir um plano nacional. Independente do que gerou em termos concretos, o debate vem amadurecendo. Como a Copa do Mundo já foi e a Olimpíada está mais do que encaminhada, se criou uma janela de oportunidade para dar vazão a uma série de questões que visam estruturar o esporte como um todo. Nos últimos anos, o que se tem cuidado em termos de política e orçamento público foi muito relacionado à estruturação desses dois grandes eventos. Ainda falta focar no planejamento e na visão de construção no Brasil, não é só dinheiro que falta para a gente desenvolver o esporte como um todo. Falta estrutura, pessoal e captação de uma visão nacional de esporte. A gente está participando e ajudando essas propostas a virarem efetivamente realidade. Se der certo no final, viva, vamos todos comemorar.

Estadão –Como você vê o engajamento dos atletas que estão em atividade?

Ana Moser – Quando criamos o Atletas pelo Brasil, queríamos levar as ideias para fora, mas também tinha uma intenção de desenvolver esse senso participativo político da classe esportiva. Entre os atletas em atividade há uma grande dificuldade que é o contexto. O sistema é opressor, existe censura velada, existe censura de ter uma voz crítica de dentro do sistema de federações e confederações brasileiras. Quem é muito contestador acaba se prejudicando até em convocação para a seleção brasileira, em patrocínio. É mais delicado para quem está em atividade. Para quem está fora, é mais fácil. Mas o Atletas pelo Brasil quer ser o maior representante desse grupo de simpatizantes com a causa. Para isso, você tem de ter um mínimo denominador comum para que mantenha o engajamento. Nós não somos guerrilheiros radicais, a gente tem buscado o diálogo sempre, propositivo, mas sendo firme nas posições. Isso de uma maneira geral ecoa no meio dos atletas, o atleta historicamente tem pouca oportunidade de participação e isso é o que precisa acontecer, não ser só a ponta da engrenagem, mas poder participar da engrenagem.

Estadão –Você recebeu um convite para assumir a presidência da APO?

Ana Moser – Recebi um convite para a APO, mas politicamente foi derrubado por conta da necessidade de aprovação no Congresso Nacional, no Senado. Era uma época em que não se aprovava nada do governo, e a coisa se desfez.

Estadão –Você acha que teve alguma relação com o fato de, em 2009, você ter enviado um e-mail para o Comitê Olímpico Internacional para que os delegados não elegessem o Rio como sede da Olimpíada de 2016?

Ana Moser – Essa foi a desculpa, mas nada mais fiz do que ter uma opinião e expressar essa opinião não fazendo propaganda na imprensa para ser sensacionalista, mas expressando minha opinião como cidadã no meio que era possível. Não era novidade. Na época, lógico que não publicamente, foi debatido em reunião de conselhos com o COB. Quem estava lá presente sabe dessa história, não é segredo. Como você não aceita quem tem opinião? A minha posição era uma lá trás e acho que eu estava certa em algumas coisas e errada em outras. Essa década esportiva trouxe avanços para o esporte, é inegável, mas desviou atenção e recursos de uma estruturação de base, que estamos começando efetivamente neste ano com essa intenção de formular uma lei de sistema nacional do esporte, que adequaria recursos sustentáveis para o esporte em todas as dimensões. Esse é o legado dos Jogos Olímpicos que a gente vem pedindo e lutando desde lá atrás. Nesse contexto todo, eu sempre defendi uma coisa: o esporte. Esse e-mail foi a desculpa para a questão política, que era não abrir uma posição para pessoas de fora ou que têm opiniões e posições que podem assustar.

Estadão –Você lamenta o ocorrido?

Ana Moser – Pessoalmente, tinha um lado bom e um risco. Dentro das atribuições da Autoridade Pública Olímpica está o legado e foi para isso que fui convidada. Na época do convite, não havia nenhuma grande estratégia nessa área e seria para juntar todas essas interlocuções. Isso foi uma coisa a se lamentar, mas, por outro lado, era um risco grande até pelo próprio cargo. Eu hoje teria até muito a perder, teria de me afastar por um tempo das minhas funções, pelo menos até a Olimpíada, então, era um risco.

Estadão –O que você acha da nomeação da Luiza Trajano para o Conselho Público Olímpico da APO?

Ana Moser – É um conselho amplo de representantes da sociedade para validar questões aprovadas pela própria APO. Pelo que li, ela é uma pessoa próxima à presidente da República. É mais um alinhamento estratégico e político para garantir que a Olimpíada seja realizada da melhor maneira possível.

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