Ex-presa política lembra suplício no período militar

A jornalista Teresa Urban, 57, carrega em sua história as marcas do período militar. Foi presa diversas vezes, torturada, obrigada a viver longe de casa, na clandestinidade. Apesar de sua participação efetiva na luta contra a repressão, Teresa é reservada e demonstra não se sentir bem ao relatar as experiências que viveu. Afirma que é apenas “uma parte do todo” e que sua história é igual à de milhares outros jovens que queriam mudar o País na época. “Acho que a memória coletiva é importante, faz parte da História, mas relatar minha experiência pessoal me incomoda um pouco”, revela a jornalista. Apesar do ligeiro desconforto, Teresa Urban recebeu gentilmente a reportagem em sua residência. Confira alguns trechos da entrevista concedida pela jornalista:

31 de março de 64 – “Sempre tive interesse pelo que estava acontecendo no País, mas não era militante. A noção e a dimensão do acontecimento era de uma menina de 17 anos. Comecei a entender as implicações do golpe quando entrei na universidade, um ano depois.”

Jornalismo na Universidade Federal do Paraná (UFPR) – “Entrei na faculdade com um monte de sonhos, queria um País melhor, mais justo. E na verdade, o curso era uma droga. Nada do que eu tinha imaginado fazia sentido ali. A universidade sofria pressão de todos os lados. Entrei para o movimento estudantil, reclamando que não tinha aulas, que o curso era ruim. Esse pequeno movimento já provocou as primeiras reprimendas. O sistema da universidade parecia de colégio e o diretório acadêmico estava sob intervenção. Perceber que a universidade estava se desmantelando e vincular isso à ditadura foi um pulo.”

Final de 66 – “Não era mais ligada ao movimento estudantil, mas sim ao movimento organizado de esquerda. A primeira prisão foi no dia 3 de outubro, quando o Congresso iria validar Costa e Silva como presidente. Homens do Exército cercaram o quarteirão da minha casa e me tiraram à força. Foi um escândalo. Fiquei na Secretaria de Segurança Pública e me liberaram no mesmo dia. Foi uma ação intimidatória.”

1967 e 1968 – “Já tinha uma vida clandestina. Adotei vários nomes, como Rita, Roberta. Mas eu gostava mesmo era de Batista… não se sabia se se tratava de homem ou mulher. Passei a viver com a organização dos trabalhadores, principalmente no Norte do Paraná. Para conseguir tirar documento falso era simples: bastava me vestir de bóia-fria, ir a um cartório com alguém bem arrumado que dizia que eu não tinha certidão de nascimento. Com o AI-5, tudo mudou, ficou mais complicado.”

Julho de 70 – “Fiquei presa no Quartel da Rui Barbosa durante 60 dias. Foi um período de tortura, espancamento, muita pressão. Apanhei muito na região dos rins. Eu havia tido filho há pouco tempo e tive muito sangramento, infecção do útero. Fiquei doente e vi muitos companheiros sofrendo, muita gente destruída física e moralmente. Depois de dois meses, fui liberada com a condição de permanecer no País. Mas fugi para o Chile.”

Chile – “Fui de ônibus até Foz do Iguaçu. Atravessei o Rio Paraná de barco, à noite. De lá, segui para a Argentina e depois para o Chile, onde pedi proteção. Ganhei lá meu segundo filho. Achei que iria acontecer um golpe no Chile e resolvi voltar. Na fronteira entre a Argentina e o Chile fui presa.”

Final de 72 – “Quando consegui voltar ao Brasil fui presa e levada para a Penitenciária Feminina em Piraquara. Ficava isolada, numa cela muito pequena. Fiz greve de fome, comecei a ficar maluca. Conforme acordo entre o bispo dom Pedro Fedalto e a 5.ª Região Militar, fui transferida para um convento, o das Irmãs de Caridade, na Manoel Ribas. Fiquei lá dois anos: 73 e 74. Quando saí de lá, no início de 75, não conseguia me registrar como jornalista no Ministério do Trabalho. Exigiam atestado de bons antecedentes, e eu não tinha. Quando finalmente consegui um atestado, apenas de antecedentes, entrei com uma petição judicial. Consegui o registro, mas não trabalho. Só consegui trabalhar em 76, na revista Panorama. Depois, trabalhei na sucursal da Veja, Estadão. Só não podia cobrir visita presidencial, nem de ministros.”

Comando de Caça aos Comunistas (CCC) – “O período de 75 a 80 foi um dos piores. Fui perseguida pelo CCC, sem tréguas. Eu recebia carta com ameaças de morte, telefonemas anônimos. Eu não participava mais de enfrentamentos, tinha dois filhos pequenos e vivia em insegurança, porque não sabia quem eram os inimigos.”

Arrependimento? – “Não me arrependo nem um pouco. Foi um aprendizado pessoal riquíssimo. Aqueles anos determinaram um modo para a minha vida, da qual gosto até hoje. Só lamento o sofrimento pelos meus filhos, porque não foram eles que fizeram a escolha, fui eu.”

40 anos depois…. – “Quando olho para trás, penso muito mais no que aquilo (ditadura militar) significou depois: quanto mudou a vida do País e a minha própria vida. Não acho que a gente tenha chance de recuperar o tempo perdido e construir um País com cara própria. Somos uma cópia mal feita do capitalismo. E as gerações que vieram depois de mim desaprenderam a pensar. O resultado é uma formação voltada para um mercado de trabalho submisso, uma enorme falta de conhecimento. E vivemos uma guerra civil real, entre os que têm demais e os que nada têm. Era um País que tinha tudo para ser outro…”

Indenização – “Não pedi indenização. Não sinto que fui lesada e acho que o povo brasileiro não me deve nada. Estava consciente quando participei, foi uma escolha.”

Números ainda são imprecisos

Reduzir os vinte anos da ditadura militar a um balanço numérico é algo perigoso. Primeiro, porque seria uma maneira fria e impessoal de medir as conseqüências da tomada do poder pelos militares. Segundo, porque nem os próprios números são precisos. Conforme levantamento do Comitê Londrinense de Anistia, de abril de 64 a março de 69, teriam sido registradas 2.726 detenções e 975 prisões no Paraná. A partir de 1975 foram mais 97 prisões, somando 3.798 ocorrências. “Pode parecer pouco, mas é muito se considerado o clima de medo instalado no País”, ressalva o jornalista Milton Ivan Heller, 72. Milton era repórter político da sucursal do jornal Última Hora – veículo que apoiava as reformas de base defendidas por João Goulart – ao lado de outros nomes da imprensa paranaense, como Mussa José Assis, Luiz Geraldo Mazza, Adherbal Fortes, Sílvio Back. Durante a ditadura militar, Milton foi processado, mas não preso. “Pior do que a censura é a auto-censura, e isso durou muito tempo”, conta. “Naquela época, o presidente e os ministros visitavam os estados e todos paravam para prestar atos de vassalagem. Os jornalistas compareciam, mas não podiam entrevistar ninguém. Éramos tratados com empurrões”, lembra.

Dados nacionais

Os números nacionais apontam para o registro de mais de 400 entre mortos e desaparecidos – no Paraná, não há estimativa -, além de 10 mil exílios. “Os estados nunca tiveram um comando integrado. Não é um balanço fácil de fazer”, aponta Narciso Pires, coordenador do grupo Tortura Nunca Mais, no Paraná. Nem o próprio Arquivo Público, que abriga documentos da antiga Dops (Delegacia de Ordem Política e Social), tem esses dados.

Estima-se que o governo do Estado tenha concedido cerca de 200 indenizações, com o decreto da Lei Estadual 11.255 de 1995. Do total, entre 170 e 180 receberam a indenização máxima: R$ 30 mil. Já a União reconheceu, no artigo 8.º da Constituição de 1988, a indenização a perseguidos políticos no período de 1964 a 1988. A regulamentação do artigo, no entanto, só veio em 2002, com a Lei 10.559. “A indenização é um reconhecimento do governo de que agiu criminosamente contra os cidadãos. No entanto, não repõe as perdas sofridas”, lamenta Narciso Pires, indenizado pelo governo do Estado em R$ 30 mil, em 98, e que aguarda a indenização do governo federal.

Narciso conta que foi torturado, por afogamento e espancamento, por conta da Operação Marumbi – uma das ações de maior violência que tinha como objetivo desmantelar o PC do B no Paraná. Ficou preso durante dois anos, entre outubro de 75 e outubro de 77. “Na Operação Marumbi participaram cerca de cem pessoas – 65 foram processadas e 17, condenadas. Eu estava entre os condenados”, conta. Durante o período militar, Narciso Pires foi obrigado a abandonar a função de professor e ainda perdeu uma empresa e três carros. “Vivi absolutamente na clandestinidade, dependendo da solidariedade.” (LS)

Golpe militar ou antigolpe?

Antigolpe, revolução democrática, movimento cívico. Essas expressões podem não ser muito utilizadas nem reproduzidas nos livros de História do Brasil, mas são as adotadas pelos militares quando o assunto é o golpe militar de 64. “Estava se esboçando no País um golpe de esquerda, que seria tutelado pelos comunistas. O que chamam de golpe militar foi na verdade um contragolpe, uma reação para o restabelecimento da hierarquia, da disciplina”, defende o general da reserva Raymundo Torres Negrão, que já foi chefe da Seção de Informações do Quartel-General da 5.ª Região Militar, em Curitiba, e presidente da Subcomissão Geral de Investigações do Paraná, durante os anos que o poder esteve nas mãos dos militares.

Após 40 anos, o general afirma que a tomada do poder pelos militares foi de fato necessária. “Não restou outra alternativa. Jango estava inteiramente dominado pela esquerda. Era um boneco”, diz.

Para o general, o grande erro do governo João Goulart foi a tentativa de neutralizar o Exército, através do aliciamento de praças, subtenentes, soldados. “Tentaram quebrar a espinha dorsal das Forças Armadas. Aquilo alarmou os militares”, afirma. Em Curitiba, o comandante do CPOR (Centro de Preparação dos Oficiais da Reserva), coronel Alcides de Amaral Bacelar, era o presidente do diretório municipal do PTB. “Como um coronel da ativa pertencia à diretoria de um partido comunista?”, questiona.

Sobre as prisões ocorridas no período de 1964 a 1985, torturas, exílios e mortes, o general é taxativo. “Tudo isso é uma balela, uma mentira que se construiu. Garanto que se houve de fato 10% dos casos de maus tratos relatados, é muito”, afirmou. “Se davam porrada no Dops (Delegacia de Ordem Política e Social) eu não sei. Mas na área militar, não houve tortura. Pelo menos não que seja de meu conhecimento.” (LS)

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