Miles Davis: o mais inquieto dos jazzista faria 90 anos

“Hey Wayne”, dizia Miles Davis com seu fio de voz ao jovem saxofonista de seu grupo. “Você poderia tocar esse sax como se não soubesse tocar? Como se fosse uma criança?” Wayne Shorter demorou, mas entendeu o que o chefe queria. Miles pedia que seus músicos experimentassem a surpresa antes mesmo que tentassem surpreender as plateias. E a surpresa não vem se os dedos não se jogarem por caminhos que eles nunca desbravaram. Improvisar tocando padrões melódicos pré-fabricados, frases ensaiadas e células rítmicas guardadas na cartola como coelhos é um ótimo recurso dos fracos. Miles Davis queria a criação plena, a conexão com o invisível que o faria grande e poderoso por dois ou três minutos antes de desaparecer.

O mais irrequieto dos criadores faria nesta quinta, dia 26, 90 anos de idade. Seria quem? Um senhor com as articulações e o espírito enrijecidos pelo tempo? Gravaria o quê? Estaria caminhando para onde? Sua morte foi em 1991, depois de uma internação de um mês, anotada nos registros do Hospital Saint Johns, em Santa Monica, Califórnia, como “enfarte, pneumonia e problemas respiratórios”. Males que o próprio músico sabia ter origem nas mesmas seringas da heroína que injetou por anos. Ele tinha 65 anos e já tinha chegado a algum lugar que não entendemos ainda. Esteve sempre com o trompete nos lábios e o lápis nas mãos, apagando e reescrevendo uma música nova em formas e sonoridades. “Propulsor do bebop”, “pai do cool jazz”, “inventor do jazz fusion”, “visionário do eletric jazz”. Um dos títulos já justificariam sua existência, mas Miles Davis tinha todos.

Um filme está a caminho. Ainda sem data de estreia, mas certo de que será este ano, ‘Miles Ahead’ flutua sobre uma nuvem de altas expectativas. O diretor e ator principal é Don Cheadle, que propicia uma das mais impressionantes reencarnações cinebiográficas. Miles Davis está em sua voz, em seus gestos, na violência irascível e na explosão criativa.

Aparece dando tiros em um executivo de gravadora, fartando-se nas drogas, batendo em jornalistas e abatendo damas. Honesto e impiedoso com seu ídolo real, Cheadle, que toca trompete e tem Miles como um herói desde a infância, explicou sua transformação pessoal ao receber a imprensa mundial para falar sobre o filme, em abril, nos Estados Unidos. “Eu quis centrar-me em um período da vida dele em que ele não tocava mas tentava perceber o que podia tocar, tentava experimentar coisas novas e criar uma dinâmica para voltar a encontrar a sua voz.”

Os músicos com quem tocou lembravam sempre dos seus ensinamentos. “Apenas toque o que não está nas pautas”, dizia. E assim foi com John Coltrane, Bill Evans, Wayne Shorter e Herbie Hancock. Charlie Parker já era grande quando o viu tocando o maldito jazz no Harlem da música gospel. O bebop nasceria daquelas quatro mãos, Parker e Miles, as mesmas que reinventariam a loucura. “Ele me ensinou muitas coisas, inclusive a insanidade”, disse Parker.

Sua vida começa a incendiar a partir de 1945, quando deixa a escola formal e passa a tocar dia e noite à bordo do Charlie Parker Quintet. Com fôlego no pulmão de anfíbio, treinado nas longas e rápidas frases do bebop, criou um sexteto com seu nome, depois um noneto e depois quinteto, até que descobriu a heroína. Ela veio com força em 1950, tão avassaladora quanto a tropa de choque que o seguia: John Coltrane no sax; Paul Chambers no baixo, Philly Joe Jones na bateria e Red Garland ao piano.

O ar de Miles Davis parecia intoxicar os músicos que o respiravam com algo que os tirava do chão. Wayne Shorter e Joe Zawinul foram formar o Weather Report, Chick Corea fundou o Return to Forever, John McLaughlin e Billy Cobham criaram a Mahavishnu Orchestra. Era a vez do jazz fusion, cheio das águas de Jimi Hendrix e Sly and the Family Stone, fazer jazz com rock. ‘Bitches Brew’, criado sob esta atmosfera, é considerado sua pedra inaugural.

Os anos 80 foram mais preocupantes. Um pouco antes que eles chegassem, em 1975, Miles sofria recaídas ao inferno que já conhecia. Saía a heroína, entravam o álcool e a cocaína. Cinco anos de inatividade se tornaram seu maior prejuízo. Os caminhos da música pop pós 70 também mexeram com seus brios e lá se foi Miles Davis reinventar-se. Gravou músicas de Michael Jackson em ‘You’re Under Arrest’, em 1985, e comprou briga com o trompetista de New Orleans, Wynton Marsalis, que criticava sua fusão dizendo que aquilo não era jazz. No Festival Internacional de Vancouver, em 1986, Miles saiu de cena assim que viu Marsalis se aproximando para fazerem um tema juntos. Nenhuma polêmica, no entanto, seria páreo para a obra que construiu monumentalmente. E é por ela – ‘Round About Midnight’ (1957); ‘Miles Ahead’ (1957); ‘Milestones’ (1958); ‘Kind of Blue’ (1959); ou ‘Miles Smiles’ (1967) – que Miles Davis acenderá suas velas até o final dos tempos.

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