David Bowie sempre preferiu o desafio da criação

David Bowie colocou seu chapéu e saiu de casa em uma noite de 2013 em busca de um club de jazz em Nova York para assistir ao show de um saxofonista, DannyMcCaslin, que havia sido indicado pela amiga, a pianista Maria Schneider. Entrou no club, sentou-se solitário e deixou que aquela linguagem o tomasse. A atmosfera criada pelo sax, a bateria jogando contra os lugares comuns, tudo parecia conduzi-lo para mais um canto desconhecido de sua alma. Bowie deixou o club embriagado por aqueles caminhos, decidido a fazer um novo disco que romperia definitivamente e mais uma vez com seu anterior, The Next Day (2013). Ao chegar em casa, ele já sabia como implodiria o David Bowie que havia recriado em 2013 para ressurgir novo, distante de todos os Bowies anteriores. Ao lançar Blackstar na última sexta-feira, 8, dia de seu aniversário, arrebatou os críticos mais uma vez, como se começasse tudo de novo.

Esse homem tinha 69 anos e um diagnóstico de câncer. Poderia estar vivendo de seus dividendos obtidos com a carreira que construiu desde 1969, quando aterrissou de alguma galáxia desconhecida com sua canção Space Oddity. Mesmo bombardeando os padrões do mundo pop, negando as facilidades das canções mais óbvias, recusando projetos revisionistas das próprias vitórias e querendo mais a paz de sua reclusão do que as coletivas de imprensa, seu império cresceu. Suas vendas de discos chegaram a 136 milhões de álbuns, nove deles de platina, onze de ouro e oito de prata no Reino Unido, e seu universo ficou grande demais para o rock. Não existia música para Bowie se ela não dialogasse com a moda, com o cinema, com as artes plásticas.

Os números são surpreendentes, mas o fato é que poderiam ter sido bem maiores. 136 milhões de discos está longe dos 600 milhões dos soberanos Beatles ou 400 de Michael Jackson. Tonico e Tinoco estão à sua frente, com 150 milhões. Mas eis o enigma Bowie, o homem que rejeitou o topo buscando linguagens tão desafiadoras quando, por vezes, ininteligíveis. Suas experiências fonográficas são de sucessos inconstantes nos anos 70 e sua realização pessoal jamais pareceu alinhada à expectativa dos fãs ou da indústria do disco.

Isso ficou mais evidente em anos como o inaugural da fama, 1972, quando surgiu como Ziggy Stardust; em 1975, quando fez o álbum Young Americans, que trazia a faixa Fame (em parceria com John Lennon); em 1980, quando chegou com Scary Monsters (and Super Creeps), com a canção Ashes to Ashes; em 1981, quando fez para Freddie Mercury cantar com o Queen a clássica Under Pressure; ou em 1983, quando conheceu o auge com Let’s Dance. Não é muito para uma carreira tão longa, mas talvez suas grandes experiências estejam naquilo que nem todos ouviram, suas maiores realizações vivam em discos que ninguém entendeu.

Quando saiu de casa em busca do músico de jazz que Maria Schneider havia lhe indicado, Bowie sentia o cheiro de frescor que uma nova linguagem poderia dar à sua carreira. Enquanto seus pares ingleses muito mais ricos e visíveis que ele – Mick Jagger, Eric Clapton, Paul McCartney, Elton John – moviam-se para reafirmar a personalidade artística que um dia criaram para sustentar suas existências, Bowie ia justamente na mão contrária. Se algo dava certo, não servia mais. Se o topo chegasse, era preciso se jogar do penhasco para escalá-lo de novo. Ao sair do show de McCaslin naquela noite de Nova York, ela era mais Bowie do que nunca. O diagnóstico de câncer seria implacável, mas David Bowie caiu atirando.