Em ‘Um Pouco de Caos’, jardim do rei vira metáfora da vida e da arte

Há uma cena de Um Pouco de Caos em que a personagem de Kate Winslet – a jardineira que está criando um novo espaço verde para o Rei-Sol em Versalhes – é atraída ao palácio. Ela é arrastada à alcova da favorita, onde se reúnem as mulheres. O rei Luís XIV não tolera que se fale de morte, até por estar abalado com a morte da mulher. E o assunto termina dominando, porque todas aquelas mulheres, a começar por Kate, tiveram perdas – de filhos. Na arquitetura dramática de Um Pouco de Caos, essa cena é precedida por outra em que Kate fala com o rei sem saber quem ele é. Toma-o por um vendedor de plantas em seu jardim. E o Rei-Sol, vejam só, num momento de vulnerabilidade, fala com ela como um simples mortal. Na cena posterior à da alcova, Kate, sempre ela, reencontra o rei no palácio, e agora ela sabe quem ele é. Oferece-lhe uma rosa.

Uma rosa é uma rosa é uma rosa. Mas como Kate fala com o rei, na verdade ela está metaforizando a flor e falando das mulheres. Um Pouco de Caos estreou na quinta-feira e não está tendo do público a atenção que merece. É verdade que você não deve estar vendo nem ouvindo muita gente elogiar o filme dirigido por Alan Rickman. Na internet, as ‘críticas’ dizem que é previsível, que o roteiro é fraco e o elenco, com exceção de Kate, preguiçoso. Será? Stanley Tucci faz o efeminado irmão do rei e, numa cena, sua mulher diz a Kate que sabe que o marido é gay e que o nobre que o acompanha é seu amante. E ela prossegue – apesar disso, ele lhe fez muitos filhos e, na guerra, mostrou coragem. Por tudo isso, ela está satisfeita por sua escolha de marido. Um diálogo desse é tudo, menos previsível. Na cena da alcova – é preciso voltar a ela -, a decana das convidadas é interpretada por Phyllida Law.

Você sabe quem é. Mãe de Emma Thompson (na vida), grande atriz, ela já teve um papel destacado no longa de estreia de Rickman, Momento de Afeto. Rickman, você também sabe quem é. Ator da série Harry Potter (Severus Snape), é multipremiado no teatro e no cinema. Ele abre seu filme de forma nada previsível. O rei acorda e é ‘montado’ – sobre o camisolão, os lacaios colocam o manto e a cabeleira – para representar o poder do Estado. Esse cerimonial não é só curioso. Em A Tomada do Poder por Luís XIV, Roberto Rossellini mostrou como o mesmo Rei-Sol chegou a encarnar o Estado. E, depois, na hora de dormir, ‘desmontado’ pelos lacaios no fim do filme, como ele é um homenzinho insignificante. Rickman começa seu filme onde o de Rossellini acaba. O jardim, a cascata, tudo é metáfora. O caos, esse ‘pouco’ de caos, gera uma nova harmonia. É um filme de amor, de Kate com o arquiteto Le Nôtre (Matthias Schoenaerts). São o caos e a ordem. O embate. Dizer que o filme é previsível só revela a preguiça de quem assim o define (e se define). As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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