Assistente de Iberê Camargo abre sua primeira exposição em São Paulo

Uma coincidência faz convergir na mesma semana o caminho de um mestre e seu discípulo. O primeiro, um dos expoentes da pintura brasileira, o gaúcho Iberê Camargo (1914-1994), ganha, a partir desta quarta-feira, 27, a mostra virtual As Bicicletas de Iberê Camargo, com 56 obras, entre pinturas, gravuras e desenhos. Seu discípulo e assistente, o também gaúcho Eduardo Haesbaert, que ajudou Iberê a produzir um quinto de sua obra gravada, inaugurou nessa terça, 26, na Bolsa de Arte, sua primeira exposição individual em São Paulo, apresentada por Nuno Ramos. Em seu texto, Ramos destaca a filiação de Haesbaert à linhagem de Iberê e Goeldi (1895-1961), atestada pelo papel que a sombra desempenha em sua obra.

Haesbaert é o responsável pelo ateliê de gravura da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Curiosamente, sua mostra inaugural em São Paulo, com 28 obras expostas, tem apenas duas impressões de pigmento mineral sobre papel e uma água-tinta. Os 25 trabalhos restantes utilizam óleo e pastel seco sobre tela, reforçando sua ligação com a pintura densa e saturnina de Iberê. A de Haesbaert não é menos soturna. O chiaroscuro dessa pintura corresponde à “maneira negra” da gravura, técnica delicada de impressão que dá a ela um aspecto aveludado, graças ao contraste entre o negro intenso e os clarões de luz, resultante da intervenção na chapa.

Para um artesão que conhece todas as técnicas de gravura e introduziu grandes pintores no métier, usar o berceau para obter esses efeitos na superfície da chapa é simples. Difícil mesmo é conseguir resultado semelhante com o óleo e o pastel seco. Vale lembrar que muitas das pinturas de Iberê Camargo tiveram origem em gravuras. O caminho inverso também era válido. “No período final, o dos ciclistas, Iberê produz pinturas cuja técnica chegou próxima da água-tinta e da água-forte”, observa Haesbaert, citando ainda o aspecto corrosivo de seus carretéis iniciais, definidos mais por áreas tonais que por linhas.

Iberê teve aulas com Hans Steiner e Guignard – e isso é nítido em sua obra. Já Haesbaert tem uma forte ligação com o escuro universo de Goeldi, como observou Nuno Ramos, especialmente no que se refere à ambígua relação entre espaço interno e externo. Na arquitetura espacial das telas do pintor gaúcho, escadas não conduzem necessariamente a um lugar determinado e um eclipse pode deixar apenas parte do ambiente visível, como no filme homônimo (L’Eclisse, 1962) de Antonioni, tirando a figura humana de foco. O preto e branco reforça a ligação de Haesbaert com o cinema italiano dos anos 1960, os clássicos japoneses de Ozu do mesmo período e os filmes do contemporâneo húngaro Béla Tarr (O Cavalo de Turim), especialmente o último.

O pintor, aliás, é casado com uma cineasta, Marta Biavaschi (diretora de Magma, que homenageou o centenário de Iberê Camargo, comemorado em novembro passado). Isso fica claro diante de uma obra como Luz de Lua, em que o artista usa parafina, pastel seco e papel sobre tela. “Repeti o gesto de Ozu, o de filmar à altura do tatame, e registrei a luz da lua incidindo sobre uma mesinha bem ao rés do chão”, conta.

O negro de fumo (carvão pulverizado) de obras de grandes dimensões na mostra apenas reforça esse paradoxo, de buscar a luz nas trevas, como fazia o abstracionista americano Ad Reinhardt (1913-1967) em sua pintura, incorporando a presença do espectador no cenário espacial por ele criado. Haesbaert adota procedimento semelhante ao de Reinhardt – o que explica a total ausência da figura humana em suas telas. “O observador já faz parte dessa arquitetura”, justifica.

Algumas telas reproduzem espaços urbanos bem conhecidos de Porto Alegre, entre eles o Parque da Redenção, tantas vezes pintado por Iberê, e o Gasômetro, uma usina movida a carvão mineral desativada em 1970. Outras buscam na literatura sua fonte de inspiração, como um pastel seco sugerido pela leitura de um conto do uruguaio Felisberto Hernandez (1902-1964), A Casa Inundada, sobre uma excêntrica mulher que edifica uma casa apenas para inundá-la – conto que, aliás, será filmado pela mulher do pintor. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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