Vale a pena ver de novo

Clássico de Alfred Hitchcock, ‘Psicose’ volta aos cinemas

Durante décadas, O Encouraçado Potemkin, de Sergei M. Eisenstein, e Cidadão Kane, de Orson Welles, alternaram-se no topo das listas dos melhores filmes de todos os tempos. Eram épocas de polarização política, mais até que ideológica, e os confrontos entre o coletivo e o individual, entre o sonho comunista e a epopeia capitalista ditavam as escolhas dos críticos. Com a derrocada do comunismo e o advento de novas gerações, novas tecnologias, Alfred Hitchcock foi para o topo. Talvez tenha ido pelo filme errado. Não que Vertigo/Um Corpo Que Cai, de 1958, não seja admirável. Sua maneira de utilizar o tempo e o espaço influenciou Alain Resnais, Hiroshima Meu Amor. Mas o Hitchcock mais influente – o melhor? – é o que volta remasterizado dos clássicos Cinemark deste fim de semana.

Em 1960, quando Hitchcock fez Psicose, era um homem em crise. Na França surgira um movimento de cineastas que o cultivava, a nouvelle vague, mas para os críticos, e a própria indústria nos EUA, o mestre do suspense começava a ser visto como superado. E não importava que Intriga Internacional, de 1959, tenha ido muito bem. O hoje incensado Vertigo, mórbido e romântico, fora incompreendido e não muito bem sucedido de público. Foi o que bastou. Para a indústria, Hitchcock deveria investir no certo, outro divertimento na vertente de Intriga Internacional – que antecipou a série 007. Ele achou que estaria se repetindo. Investiu no novo. E fez Psicose.

Um Pulp Fiction, literatura barata, de Robert Bloch. Na época comprometido com as emissões de Alfred Hitchcock Apresenta, na TV, o mestre do cinema resolveu incorporar técnicas televisivas. Iniciou uma revolução. Psicose é sobre uma mulher que rouba dinheiro da firma para iniciar vida nova com o amante. Em fuga, vai parar num motel. Conversa com o dono do lugar, um carinha de comportamento estranho, que gosta de empalhar pássaros. A conversa toma um rumo meio sinistro, sobre escolhas, sobre bem e mal, certo e errado. Ela se conscientiza do que fez, resolve recuar. Diz que vai tomar banho (purificar-se?) e iniciar pela manhã a longa viagem de volta. A cena do chuveiro é emblemática. Janet Leigh é a atriz, Marion Crane, a personagem. Ela entra no box, liga o chuveiro, uma mudança de ângulo mostra um movimento por trás da cortinas de plástico. Marion é atacada e morta a facadas. Toda a cena dura menos de um minuto – 44 segundos. Tem mais de 70 posições de câmera. Isso significa que certas imagens duram menos de um segundo na tela, vão diretamente para o inconsciente do espectador.

Hitchcock ficou famoso pelo suspense de seus filmes. Aqui, embora mantendo o espectador sobressaltado, ele investe no mistério. Ao contrário de outros filmes do mestre, que antecipam informações para o espectador, o mistério, aqui, só se esclarece no desfecho violento. Esse é um ponto. Outro é que, na época, não era frequente que a ‘estrela’ do filme, Janet Leigh, morresse ao cabo de meia-hora (menos até) de projeção. Após a morte de Marion, filme recomeça. Chega um detetive para investigar. Nova morte violenta. E ainda chegam a irmã e o amante de Marion no terceiro bloco. É isso, um relato em blocos. E a cena do chuveiro. Brian De Palma é um autor que fez daquela cena um fetiche. Repetiu o procedimento dramático (e técnico) em vários filmes. Outros (Mel Brooks, o diretor italiano Steno) fizeram paródia.

Seja como for, aquelas 70 posições de câmera durante menos de um minuto de filme influenciaram Richard Lester em seus filmes com os Beatles (Os Reis do Ié-Ié-Ié e Socorro!). Pode ter havido outras bases, outras influências, mas ela foram decisivas para o que virou a linguagem musical do videoclipe e, depois, a MTV. A música sempre foi importante nos filmes de Hitchcock. Sua parceria com Bernard Herrmann entrou para a história. E o compositor criou aqui uma de suas melhores partituras.

Conta a lenda que Alfred Hitchcock encomendou a cena do chuveiro a Saul Bass, um grande autor de créditos de filmes (incluindo filmes dele). Ele também pediu a Bass que criasse o storyboard da cena em que Argobast, o detetive, sobe a escada. Não utilizo,u o planejamento. Bass predispunha o espectador para a violência. Hitchcock queria que o público, como os personagens, fossem surpreendidos. A empresa produtora queria que o filme fosse feito em cores.

Hitchcock bateu pé. Queria preto e branco, um pouco porque a TV era preto e branco, mas também porque o vermelho sangue ficaria, segundo ele, vulgar. No recente Hitchcock, com Anthony Hopkins e Helen Mirren, o diretor Sacha Gervasi defende a tese de que Alma Reville, mulher do cineasta, foi decisiva no processo do filme. Algumas das melhores ideias em Psicose teriam sido dela.

O mestre sempre gostou de tramas sobre homens errados. A psicanálise era uma de suas ferramentas preferidas. Hitchcock e Freud nasceram um para o outro, os críticos gostam de dizer. Hitchcock sempre foi atraído por homens edipianos, até como forma de realçar o perigo representado por suas loiras frias, atrizes que escondiam o desejo ardente sob uma aparência de gelo. Psicose inicia o que não deixa de ser uma trilogia edipiana. Norman Bates tem um vínculo profundo, e doentio, com sua mãe. A origem dessa história entre mãe e filho virou série de televisão. Na sequência veio Os Pássaros, de 1963, em que uma mulher segue homem até pequena cidade, descobre que ele é dominado pela mãe possessiva e a natureza inteira reage – o apocalipse – por meio dos ataques dos pássaros. E, depois, ainda, fechando a trilogia, veio Marnie, Confissões de Uma Ladra, de 1964, com uma versão feminina de Norman, e curável.

Impossível falar de Psicose sem fazer referência ao ator. Na segunda metade dos anos 1950, Hollywood colocou na tela uma série de atores jovens, até como forma de estabelecer pontes com a juventude rebelde que irrompera na vida norte-americana, pós rock’n’roll (e Elvis Presley, James Dean). Anthony Perkins fez alguns filmes importantes, mas não ‘acontecia’ na carreira.

Interpretar Norman Bates foi sua sorte, e sua maldição. Ele é perfeito, mas, justamente por isso, o papel colou nele e o marcou. Nada do que ele fez a partir daí teve força para liberá-lo. A aura de Psicose depende muito do ator, Hitchcock sabia disso.