‘Ventos de Agosto’ faz reflexão sobre a vida e a morte

Gabriel Mascaro fazia uma viagem de recreio por Alagoas. Foi parar em Porto de Pedras, distante 100 km de Maceió. “A praia é muito bonita, mas não chega a ser diferente do que o Nordeste todo oferece. O que me impressionou foi a descoberta de um cemitério que está sendo tragado pelo mar. Comecei a indagar e as pessoas contaram que as ossadas eram levadas pelas marés. De cara senti que aquilo dava filme. Inscrevi num concurso, ganhei US$ 50 mil e foi com isso que filmamos. Ventos de Agosto nasceu da urgência que o material despertou em mim.”

Algo se passa na atual leva de filmes pernambucanos. Todo mundo, em filmes como A História da Eternidade (Camilo Cavalcanti), Sangue Azul (Lírio Ferreira) e Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade (Daniel Aragão), está sofrendo da síndrome de Cláudio Assis, com histórias fortes que remetem a uma sexualidade (quase) explícita. O problema é que só existe um Cláudio Assis. Mas há espaço para as experimentações de Gabriel Mascaro. Embora jovem, ele já provocou sua dose de polêmica com Doméstica. Mascaro propôs a diferentes pessoas que filmassem suas domésticas e, depois, editou o material. Foi duramente criticado por haver feito um filme cujas imagens não colheu, como se isso o desqualificasse. Só para lembrar, um grande diretor russo, Dziga-Vertov, utilizou-se muitas vezes de material já existente para fazer seus filmes que revolucionaram a montagem (e o documentário).

Para não deixar dúvida quanto à autoria, Mascaro desta vez foi seu diretor de fotografia, operando a câmera de Ventos de Agosto. Fazia parte do orçamento de guerrilha do filme, mas sedimentou a proposta estética. Mascaro desenvolveu um roteiro muito simples. Trabalhou com uma atriz profissional – “… mas a Dandara (de Morais) não fez muita coisa, só uma participação em Malhação” – e fez casting dos atores entre pescadores de Porto de Pedras. Escolheu Geová Manoel dos Santos, um artesão local. Aos atores, ele pedia muitas vezes que se exercitassem, criando o próprio diálogo.

Foi assim que Dandara e Geová levaram a caveira ao mais velho pescador da localidade e ele, surpreendentemente, reconheceu o morto pelo dente de ouro e contou sua história. A cena é uma das mais fortes de Ventos de Agosto, mas nada daquilo foi escrito nem ensaiado. A explicação do fato – do ‘método’ – talvez provoque reações e haverá algum crítico para dizer que Mascaro, depois de não filmar Domésticas, agora segue uma dramaturgia errática. Não é verdade. Por mais que o olhar de Mascaro sobre a comunidade seja antropológico, as básicas/minimalistas informações que ele fornece sobre seus personagens compõem uma linha dramática. “Não queria psicologizar. Queria que essas pessoas se expressassem pelo corpo. A própria Dandara é bailarina. Tudo nela se expressa pelo físico.”

Se o ponto de partida foi a profanação do cemitério pelas águas do mar, o filme versa sobre o quê? Mascaro não vacila. “Já que o registro das próprias vidas está se esvaindo, queria seguir um percurso oposto. Transformar o efêmero em permanente.” Mascaro conversa com o repórter pelo telefone. Está em Los Angeles, onde Ventos de Agosto é o único filme brasileiro na seleção internacional do festival promovido pelo American Film Institute. Mascaro conta que seu filme foi exibido num local mítico – o Grauman Chinese Theatre, no Hollywood Boulevard, cenário de pré-estreias de filmes que hoje estão integrados ao panteão do melhor da produção dos EUA.

Ventos de Agosto foi muito aplaudido, e teve direito a um movimentado Q&A, pergunta & resposta, após a projeção. O público queria saber tudo, da locação ao método. Esse interesse da plateia hollywoodiana por um filme não narrativo – no sentido tradicional – surpreendeu o diretor? “Não, porque o público do festival não é exatamente o da popcorn (pipoca com refrigerante). O festival do AFI tem a tradição de trazer o que há de mais avançado em pesquisas de linguagem para o público angeleno (de Los Angeles). O repórter cita um filme que Mascaro talvez não tenha visto. Diz que Ventos de Agosto tem muito – tudo – a ver com O Segredo das Águas, da japonesa Naomi Kawase, que talvez tenha sido o melhor filme em Cannes neste ano (mesmo tendo perdido a Palma de Ouro para o turco Nuri Bilge Ceylan, de Winter Sleep). É a deixa para Mascaro surpreender o repórter.

“Pipocaram aqui algumas críticas comparando meu filme com o da Kawase. Fiquei curioso e procurei na internet. Encontrei O Segredo das Águas baixado e vi. Acho que são diferentes, mas entendo as conexões que vocês estão fazendo.” (Ele inclui o repórter entre os admiradores de ambos.) Para o diretor, seu filme é sobre permanência. “Por isso, a personagem quer ser tatuadora. É uma profissão totalmente improvável naquele meio, mas ela quer deixar sua marca indelével num mundo em que os vestígios estão sumindo, tragados pelo mar.” Mascaro cita a cena do diálogo sobre a pedra que respira. “Queria que o próprio filme tivesse essa porosidade. Tudo é muito tênue, depende do olhar do espectador. Mas creio ter deixado também a minha marca, ficcionalizando as questões que a descoberta daquele cemitério me produziu. E tudo foi feito sem pressa, com a veracidade daqueles lugares e pessoas. Foi estimulante ver o público de Hollywood entrar nessa viagem.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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