‘Preto no Branco’ faz retrato da classe média britânica

Primeiro vêm as gargalhadas, a identificação dos absurdos nas frases ditas por membros de uma típica família britânica de classe média, a ironia latente. Depois, chega o riso nervoso, o assombro dos hábitos dessa família, sua banalização do horror. É este o caminho percorrido pelo espectador de Preto no Branco, texto do dramaturgo britânico Nick Gill, que ganha temporada no Sesc Bom Retiro a partir desta sexta-feira, 31, depois de rápida passagem pelo Festival Cultura Inglesa, em maio.

“Tive vontade de fazer o texto por sua abrangência”, diz o diretor Zé Henrique de Paula. “É maior do que aquela que o próprio autor enxergava inicialmente.” Ele se refere à situação construída por Gill com base no pensamento britânico, mas que acaba sendo totalmente possível em um cenário brasileiro.

No enredo, James (Marco Antônio Pâmio) e Jane Jones (Clara Carvalho) formam um casal ordinário – no amplo sentido da palavra. Brancos, limpos e corretos em seu mundo, soltam ótimas pérolas. “Vivemos todos no mesmo país, nós todos gozamos dos mesmos benefícios sociais, mas você não me vê no meio da rua com um canivete, vê? Não sou uma pessoa violenta”, diz Jane, assegurando sua diferença em relação aos imigrantes negros. No que seu marido pondera sobre “o rapaz simpático que trabalha no banco”, ela responde: “Mas ele foi naturalizado, não foi? Aderiu à nossa cultura, de verdade. Ele assina as revistas certas, não assina?”.

O casal tem orgulho de seu filho John, que frequenta uma respeitada universidade. A caçula Jenny, que pensa um pouco fora da caixa, já não tem o mesmo prestígio. Por vezes, suas ideias não são bem-vindas, mas ganham status quando parafraseadas pelo irmão. É Jenny que cria tensão na família quando apresenta Kwesi, seu namorado negro, religioso e com origens no Oriente Médio.

A partir daí, a comédia passa a dar espaço ao horror, que aparece por meio de vertentes diversas: há crime, abusos de poder e sexual, relações incestuosas.

“O que me chamou atenção no texto, além da contundência e crueldade, foi o tom artificial das falas”, diz o diretor. Os membros da família sempre se chamam por seus primeiros nomes (e todos têm a mesma inicial, que é a mesma do sobrenome) e repetem alguns padrões. Quando James chega do trabalho, por exemplo, cumprimenta Jane sempre da mesma maneira. Logo após, travam um diálogo sobre como cada um passou o dia, sempre igual.

A artificialidade fica evidente na cenografia. Com tudo no lugar, a casa é exageradamente realista e sua decoração repete as cores da bandeira do Reino Unido. Os figurinos do casal expressam retidão, principalmente o de Jane: uma sóbria saia xadrez que esconde os joelhos e um paletó alegre e responsável. Dentre todos os personagens, é ela a personificação mais completa do comportamento criticado por Gill.

“Apesar de detestável, Jane é uma personagem deliciosa de se fazer”, diz Clara. “É preconceituosa, careta, mas muito engraçada porque acaba dando vazão a todos os impulsos dentro dessa máscara de conveniência.” Segundo a atriz, a construção de Jane remeteu a comentários de senhoras preconceituosas. “Há tiques físicos

que acompanham a expressão racista de maneira sutil.”

Destaque para a atuação de Bruna Thedy que, além de interpretar Jenny, dá vida a Jean – namorada de John. A ideia é que as personagens sejam praticamente iguais, com algumas pequenas diferenças. “Pensamos muito na padronização das adolescentes de hoje, que, muitas vezes, são tão iguais que parecem produzidas em série”, diz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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