Primeiro dia do Festival de Veneza homenageia Chaplin

Com La Rançon de la Gloire (O Preço da Fama), concorrente ao Leão de Ouro, o diretor francês Xavier Beauvois faz uma divertida e terna homenagem a Charlie Chaplin. Homenagem meio, digamos também, meio enviesada, como se verá. A história tem como protagonistas uma dupla de amigos, Eddy (Benoit Poelvoorde) e Osman (Roschdy Zem). Osman espera Eddy na saída da prisão e o leva para casa, onde mora com a filha. Sua mulher está no hospital curando-se de um problema ortopédico.

Eddy é um tipo meio trapalhão e logo aparece em casa com uma série de presentes, entre os quais uma televisão. O primeiro programa que vêem traz a notícia da morte de Charles Chaplin, no dia de Natal de 1977. Osman não tem dinheiro para tratar da mulher, mas Eddy logo bola um plano mirabolante para tirá-los das dificuldades financeiras. O filme foi bem recebido e, de fato, é simpático. Um momento de leveza entre obras sérias e pesadas que têm chegado ao Lido.

Em entrevista, Beauvois contou que tudo surgiu de Chaplin, do mistério e encantamento com esse homem, cuja carreira começou nos primórdios do cinema e cujo personagem – Carlitos – seduz a todos ainda hoje. Para muitos, e para Beauvois, Chaplin é o gênio definitivo desta arte. Beuvois contou também que leu em algum lugar a história de dois vagabundos que, três meses depois do enterro de Chaplin, violaram o túmulo, sequestraram o caixão e exigiram resgate para devolver o corpo. Parecia mentira de tão incrível, mas, pesquisando na internet, descobriu que a história era rigorosamente verdadeira. Daí teve a ideia do filme.

Com uma trama dessas, teria mesmo de fazer um trabalho leve, bem-humorado e que se torna, afinal, num preito ao humor e ao humanismo do velho Chaplin. Filmando em Vevey, na Suíça, Beauvois trabalha com cores sóbrias e depois passa a um colorido mais intenso quando Eddy encontra sua vocação circense pelas mãos da bela Chiara Mastroianni. Muito do acerto cômico de O Preço da Fama se deve à boa química entre os atores, em especial entre os dois protagonistas. Há entre eles aquela tensão que vem da disparidade de temperamentos, um mais sonhador, outro mais pé no chão. Nada que você não tenha visto em dezenas de outros filmes. O inusitado aqui é a história. E o fato de Beauvois ter conseguido imprimir tom chapliniano àquilo de relata. Pode não ser um grande filme (e não é), mas foi um saboroso refresco neste início de festival, um tanto pesado embora de boa qualidade.

O peso maior veio do documentário The Look of Silence, sobre o genocídio na Indonésia de Suharto, no qual mais de um milhão de pessoas foram massacradas, acusadas de serem comunistas. Quem o dirige é o texano Joshua Oppenheimer, que já havia visitado o tema em Act of Killing. Ele disse que se sentiu tão impactado pela tragédia política do país que resolveu revisitá-la sob outro ponto de vista.

Em Act of Killing, eram os torturadores e assassinos que descreviam suas ações em minúcias. Agora, traz-se o olhar das vítimas. E, metaforicamente, quem conduz a investigação é um técnico em oftalmologia, que visita camponeses para detectar seus problemas de visão e receitar-lhes óculos.

Esse personagem, que interroga as pessoas e chega aos criminosos confessos,

permanece anônimo por questão de segurança. Boa parte da equipe também prefere ficar no anonimato. As imagens em alta definição jogam o espectador no ambiente da tragédia. “Queria que os espectadores imergissem nesse ambiente de silêncio no qual os sobreviventes são obrigados a conviver com os carrascos”, disse. As cenas de sangue não são mostradas, ou encenadas. O que nos chega é através da fala, dos depoimentos dos culpados – e o que dizem é terrível. Por exemplo, espalhou-se a crença de que era preciso que os carrascos bebessem o sangue das vítimas para não enlouquecer. E esse cerimonial macabro é descrito por vários deles com um grau de naturalidade bastante inquietante.

Todo o documentário, aliás, joga nessa nota perturbadora, como a repetir que, em determinadas circunstâncias, a vida humana não vale nada mesmo e que os genocídios não impressionam apenas pelos números, mas pelos requintes de crueldade neles empregados. Evidente que, passadas as circunstâncias, a maior parte deles, tanto vítimas como carrascos, quer esquecer o que passou. Em especial os assassinos, que hoje ocupam postos na administração pública ou na hierarquia militar. Mas alguns deles não se furtam a comentar e mesmo reencenar seus crimes. Parecem orgulhar-se deles. Afinal, as vítimas eram “apenas comunistas”, rótulo bastante abrangente para abarcar inimigos e desafetos em geral. Um filme fundamental sobre a parte obscura que aflora da natureza humana em determinadas circunstâncias históricas.

Também sobre brutalidade e política é O Presidente, do iraniano Moshen Makmalbaf, bastante conhecido dos cinéfilos brasileiros por seus filmes apresentados na Mostra de São Paulo, como Salam Cinema e Gabbeh. Nessa história fictícia, passado num país imaginário, um ditador é derrubado por uma revolução. A família foge, mas ele fica para trás, em companhia do seu neto. É obrigado a disfarçar-se de músico ambulante e perambula pelo país enquanto tem a cabeça posta a prêmio. Toma então, pela primeira vez na vida, contato direto com a população que oprimira durante muitos anos.

O Presidente compete na mostra paralela Horizontes. Embora seja uma fábula política um tanto didática, foi acolhido muito bem pelo público. Recebeu vários minutos de aplausos na sessão oficial. A inspiração, segundo Makmalbaf, veio da Primavera Árabe, que sacudiu vários regimes ditatoriais mas enfim não cumpriu promessas e esperanças que havia despertado, em especial no mundo ocidental. Há uma tese defendida no filme – em especial em seu desfecho – de que o exercício da vingança contra os antigos opressores só redundará em mais sangue e talvez em novas tiranias, com um ditador substituindo outro e a população ficando na mesma. Infelizmente, o desejo de vingança parte, muitas vezes, do próprio oprimido. O Presidente é um filme sombrio, com momentos luminosos e comandado por uma tese que, às vezes, se sobrepõe à narrativa e engessa a ficção. É comum que isso aconteça com Makmalbaf.

Luminoso é o outro concorrente iraniano, este na mostra principal, Ghesseha (Contos) da diretora Rakhshan Banietemad. Ela traz de volta personagens de documentários anteriores e lhes dá formato de ficção. Num desses “contos”, um rapaz, saído da prisão por envolvimento com drogas, agora trabalha como taxista e tem como passageira uma vizinha, agora exercendo a prostituição. Outra mulher surge com o rosto desfigurado por água fervente por um marido ciumento. Outro tenta enfrentar a burocracia para receber um seguro que lhe é devido, mas enfrenta a indiferença do funcionário público, preocupado em falar com a amante pelo celular. As histórias vão se encadeando, de modo fluido e implacável, formando um painel inesperado do Irã contemporâneo, muito mais diversificado e contraditório do que supõe o vão imaginário ocidental, sedimentado em clichês jornalísticos. O mundo é mais complicado. O bom cinema lhe devolve essa riqueza e complexidade.

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