‘O Homem das Multidões’ tem emoção sutil

Marcelo Gomes pode ter feito o melhor filme da retomada – Cinema, Aspirinas e Urubus -, mas o último, antes de O Homem das Multidões – Era Uma Vez, Eu, Verônica – talvez seja seu pior, apesar dos prêmios que recebeu no Festival de Brasília, em 2012. Cao Guimarães, que codirige O Homem com Gomes – pega a deixa.

“Quer dizer que eu salvei duas vezes o Marcelo? Resgatei-o da solidão e lhe dei agora uma injeção de qualidade?” O mineiro e o recifense são muito animados, e estão mais felizes ainda com a repercussão que o filme já teve no Brasil (prêmio de direção no Festival do Rio de 2013) e na passagem por vários festivais do exterior. Gomes retruca, alfinetando o repórter. “Já vi você mudar de opinião sobre alguns filmes. Quem sabe daqui a uns dez ou 20 anos o Verônica não fica bom?”

O lançamento nacional de O Homem das Multidões está sendo pequeno. Não se intimide com a restrição de salas e horários, muito menos com a etiqueta de cinema experimental já colada no filme. Para falar de um homem invisível, Gomes e Guimarães radicalizaram. Voltaram ao formato quadrado, como se estivessem abrindo uma fresta na tela grande para flagrar a pequena vida de Juvenal. É o nome do protagonista de O Homem das Multidões, interpretado pelo ator do Grupo Galpão Paulo André. Juvenal é condutor de trem no metrô de Belo Horizonte. Leva uma vida medíocre. De casa para o trabalho, do trabalho para casa. Juvenal é um anônimo. Encaixa-se à perfeição no cinema da solidão de Cao Guimarães. Integra o que não deixa de ser uma trilogia, iniciada com A Alma do Osso, de 2004, e que teve prosseguimento com O Andarilho, em 2007.

A origem da história – que não é bem uma história, no sentido tradicional, mas um delicado emaranhado de observações humanas e sociais – está num conto do escritor norte-americano Edgar Allan Poe. Quando decidiram que iam trabalhar juntos, Guimarães lembrou-se do conto de Poe. Isso foi há dez anos, mas Gomes e ele só começaram a trabalhar de verdade no projeto há sete. E não foram sete anos de dedicação exclusiva. Gomes e ele seguiram fazendo seus filmes individuais.

Acidente, Andarilho, Ex-isto, de Guimarães. Verônica, de Gomes. O que havia de atraente no original de Poe para os dois era a abordagem da solidão na cidade grande. Era algo com que podiam se identificar, e com a certeza de que estariam tratando de um tema universal.

“Começamos a trabalhar quando o Marcelo ganhou uma bolsa na Alemanha e ficou baseado em Berlim. Eu fui ao encontro dele depois de apresentar O Andarilho em Veneza. O fato de estarmos numa cidade que não era nossa, ajudou bastante”, relata Guimarães. Os personagens começaram a se desenhar. Além de Juvenal, Margô, interpretada por Sílvia Lourenço, que disfarça sua solidão na internet. Tudo com ela é virtual. “Naturalmente o filme foi tomando esse formato. Basta olhar ao redor para se ver uma geração inteira cujas relações são intermediadas pelo celular.” Gomes acrescenta, e agora não é para rir – “É assustador.”

Margô, supervisora de Juvenal, escolhe o noivo e busca o padrinho para a cerimônia de seu casamento na internet. Alimenta peixes virtuais. A relação com o pai é distante. “O próprio encontro dos dois, de Juvenal e Margô, é desconfortável para ambos”, Gomes reflete. “Ele sai da zona de conforto ao ser convidado para ser padrinho. Ela organiza esse casamento sabendo que não tem a quem convidar.” A solidão, que pode ser um problema, também é importante e até necessária. “Ela te obriga a te reinventar”, diz Guimarães. Juvenal e Margô, como personagens, se complementam. Ela não quer entrar no metrô. Ele gosta de se inserir na multidão, de estar no meio de um monte de gente, mesmo sem ter nenhum interlocutor. Juvenal se insere para ver a vida passar.

O formato quadrado, com o plano mais fechado, surgiu como uma ideia de isolamento dos personagens – na cidade como na vida. Gomes e Guimarães filmaram um quadro normal, mais amplo. Adotaram uma máscara para restringir o visual. Fizeram uma descoberta que foi fundamental. “Existe um monte de coisa ocorrendo no extracampo, coisas que o espectador não vê, mas intui. O público tem de criar na cabeça o que pode estar ocorrendo naquele momento fora do campo”, diz Guimarães.

“O filme vai contra aquilo que está tratando. A solidão, o isolamento, porque exige a participação do espectador. Nós o reclamamos como interlocutor”, define Gomes.

Um terceiro personagem importante nessa história é o pai, interpretado pelo crítico e escritor Jean-Claude Bernardet. Aos 78 anos, que completa neste sábado, 02, Bernardet teve a coragem de iniciar nova carreira, como ator. Aos diretores de O Homem das Multidões, ele confessou – “Precisei me reinventar para viver mais.” Bernardet também está em outros filmes, inclusive em Periscópio, de Kiko Goifman, que passou no recente Festival Latino. “Jean-Claude pensa o cinema o tempo todo. Ele discute a cena com a gente, contesta. Mas na hora de filmar, se a gente diz chega, ‘Vai lá e faz assim’, ele segue fielmente as indicações”, relata Gomes. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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