Mais alto que as bombas

Especial: cantor britânico Morrissey completa 55 anos

Eu provavelmente não verei você outra vez. Ironicamente, essa é o último verso cantado por Morrissey em show do The Smiths. Ao mesmo tempo que aquele 12 de dezembro de 1986 se transformaria na última performance ao vivo do grupo, funcionava também para consolidar Morrissey – não apenas como letrista, mas – como um dos maiores frontman da história do rock inglês. O fim da banda não seria o retorno de Morrissey para a sua concha.

Nascido Steven Patrick Morrissey há exatos 55 anos, completados nesta quinta-feira (22), o cantor logo abandonou seu nome composto e adotou seu sobrenome para criar uma personalidade artística inigualável. (Outra ironia: Morrissey nunca foi muito próximo de seu pai, Peter Morrissey e, portanto, o contato com os outros membros da família paterna era pueril e extremamente evitado.)

Sem nunca esconder que Johnny Marr, ao bater na sua porta com uma guitarra e um amigo a tira colo, – literalmente – salvou a sua vida, Morrissey nunca fez reservas às perspectivas que o futuro, antes daquele encontrou em 1982, lhe oferecia. Sem se fixar em nenhum emprego e sem conseguir um parceiro para encaixar a melodia em suas letras, Morrissey estaria destinado, assim como os irmãos Reid antes de formar o Jesus & Mary Chain, a (sobre)viver de “dole”, uma espécie de ajuda do governo a desempregados no Reino Unido.

Na primeira entrevista a um grande semanário musical, no caso o “Melody Maker”, em 1983, Morrissey, antes mesmo que o primeiro álbum dos Smiths fosse lançado, deixou claro a certeza que tinha de como o seu trabalho era importante para os jovens britânicos. “É uma questão de vida ou morte para mim. A música afeta a todos e eu realmente acredito que ela pode mudar o mundo”.

Não existem amigos na vida moderna

Sem nunca conseguir aceitar a apatia do mundo que o cercava, Morrissey se transformou em um adolescente introvertido – que passava semanas trancado em seu quarto, sempre acompanhado de Oscar Wilde, James Dean e Shelagh Delaney. A santíssima trindade de heróis acompanharia o cantor em boa parte de sua carreira.

“Nunca fiz nenhum segredo de que, ao menos, 50% da razão pela qual escrevo seja culpa de Shelagh Delaney, que escreveu ‘A Taste of honey’. E ‘This night has opened my eyes’ (música do disco Hatful of hollow, de 1984) é uma canção sobre a peça”, confessou na edição de 07 de junho do semanário “New musical express” (NME). A fascinação por James Dean, ator que morreu tragicamente em 1955, começou quando o futuro líder dos Smiths assistiu “quase por acaso”, aos oito anos, ao filme Juventude transviada, lançado poucos meses após a morte do ator. Já a devoção por Wilde – e seu estilo de vida – seria fruto da influência da mãe, uma imigrante irlandesa que trabalhava como bibliotecária e apresentaria ao filho os contos infantis do escritor.

Durante alguns anos, esses seriam os únicos amigos de Morrissey. O autoexílio só terminaria quando Linder Sterling, quatro anos mais velha, aparecesse na vida do bardo inglês. Os dois se conheceriam no underground de Manchester, um ambiente que não parecia combinar com o jeito tímido e inseguro do rapaz, mas que, em oposição, era o lar perfeito para a amiga. Linder, que mais tarde se transformaria na vocalista da banda Ludus e em proeminente artista plástica, uma das primeiras a defender o feminismo, seria inspiração para “Cemetry gates”, lançada em 1986 no disco The Queen is dead, a obra máxima do quarteto. Contando a história de jovens que se encontram nos portões dos cemitérios para passear pelo túmulo, a canção mostra que todos vivem, morrem, amam, odeiam e têm paixões parecidas.

Divulgação
Após cinco anos, esse ano o cantor lança seu
décimo álbum: World peace is none of your
business.

Morrissey criou a letra, até certo ponto mórbida, em cima de uma melodia relativamente feliz de Johnny Marr. E essa não seria a única galhofa da música. Morrissey, que sempre “roubou” frases de livros, outras músicas ou filmes, canta a pleno pulmões: “se você escreve poemas ou prosa / as palavras que você usa devem ser suas / não faça plágio ou ‘pegue emprestado’”.

Mas os fãs também não perderiam tempo em procurar por pistas das preferências de Morrissey. “Li O Retrato de Dorian Gray por causa dele, depois que vi aquela foto dele rodeado por livros do Wilde, e li a biografia escrita pelo Richard Ellmann. Vi vários filmes por causa dos Smiths: ‘Vidas Amargas’ (primeiro longa de James Dean como protagonista), ‘O Colecionador’ (uma cena cortada do filme seria usada na capa do single ‘What the difference does it make?’), ‘Um gosto de Mel’ (inspirado na peça homônima de Delaney) , Jogo Mortal, Tudo começou no sábado, etc. Procurei conhecer coisas que ele gostava, como o New York Dolls”, comentou o médico Daniel Boratto, que descobriu os Smiths “de 1985 para 1986, quando lançaram no Brasil o single The Boy with the thorn in his side”.

O jornalista e servidor público Marcelo Fialho também encontrou nas palavras de Morrissey uma companheira para todas as horas. “A música dele é uma grande amiga, talvez nossa melhor. Em momentos difíceis, apesar de ser melancólica, ela nos salva da depressão e funciona como uma espécie de redenção. Por isso, esse tratamento com ares de religiosidade que os fãs dedicam ao Morrissey: a identificação e a sintonia são gigantescas”, confessou.

Mate e coma

Em 17 de abril de 2009, durante o famoso festival Coachella, parte da turnê do disco Years od refusal, lançado em fevereiro daquele ano, Morrissey deu mais uma amostra da sua intolerância ao consumo de carne animal. Na metade da apresentação o cantor sentiu cheiro de carne e não pensou duas vezes em dizer: “por Deus, que isso seja carne humana”. Para alguns, Morrissey é um radical do vegetarianismo, para outros, ele é um modelo a ser seguido. A sua primeira declaração oficial a respeito da questão foi o segundo álbum dos Smiths: Meat is muder (Carne é assassinato), lançado em 1985.

O assunto seria uma recorrência na carreira do cantor, que jamais abandonaria a causa. A letra da canção que dá nome ao trabalho é muito clara: “a carne que você caprichosamente frita / não suculenta, saborosa ou gostosa / isso é morte sem motivo / e morte sem motivo é assassinato”.

Os direitos e o tratamento ético aos animais voltariam à berlinda com uma frequência que deixaria qualquer açougueiro envergonhado. Em 2010, em uma entrevista ao jornal britânico The Guardian, Morrissey dispararia: “vou viu as notícias sobre o tratamento dado aos animais (na China)? É simplesmente um horror. Você não consegue evitar de sentir que os chineses são uma subespécie”. O poeta Simon Armitage, que entrevistava o cantor, não deixou de se mostrar chocado com a declaração e soube, naquele exato momento, qual seria a repercussão daquela frase.

A organização Love music, hate racism foi a primeira a pedir retratação por parte de Morrissey, que respondeu um sonoro “não”.  A letra de “Bullfighter dies” (O toureiro morre), que fará parte do álbum a ser lançado em meados de julho, World Peace is none of your business, é tão certeira quando a sua predecessora dos anos 1980. “Alguém te conta e você comemora: / Viva, viva / O toureiro morre / e ninguém chora / porque tudo o que queremos é que o touro sobreviva”. A música cita várias cidades espanholas, como Madri, Málaga, Sevilha e Barcelona, é uma das mais bem recepcionadas pelo público da atual turnê, que está cruzando os Estados Unidos. O que ele pensaria se conhecesse os rodeios brasileiros?

Esfinge sem segredos

Morrissey nunca foi uma esfinge fácil de se decifrar e uma dos maiores mistérios está sem sua sexualidade. &ldquo,;This charming man”, “Pretty girls make graves” e “My love life” colocariam em xeque a alegação, feita pelo próprio Morrissey, de que o celibato era a sua escolha. Quando “revelou” ao mundo a sua “condição”, aquilo parecia ter sido tão suave que arrebatou milhares de jovens.

Versos como “o sexo implora para que você se perca em si mesmo”, de “Strech out and wait”, revelariam o pensamento morrisseyniano de o sexo é uma prisão para homens que “casam porque isso é o esperado” e mulheres são “apenas a esposa de alguém”. A nuvem que cerca a questão começaria se dissipar há 20 anos, com o lançamento de Vauxhall & I – disco considerado clássico. O disco era dedicado um tal de Jake.

O mistério era grande na época. Jake Walters era visto constantemente com Morrissey e ninguém sabia o quem realmente era. O sujeito parecia o estereótipo perfeito para Morrissey: magrelo, pele branca e cabeça raspada ao estilo skinhead. Em autobiografia, que deve ser lançada no Brasil em junho ou julho, o cantor revela que sua relação com Jake foi a primeira vez em que o “eterno eu se transformou em nós”.

Essa espécie de mea culpa faria com o ex-vocalista dos Smiths se transformasse em manchete instantânea: “Morrissey admite relação homossexual”. Como resposta, o bardo não perdoou e se definiu como “humanossexual”. A polêmica não teria mais fim.

“Happy lovers at last united”

A persona intrigante de Morrissey é um prato cheio para a realidade a ficção. As coincidências que levaram o publicitário e escritor Leandro Leal a ter em mãos um walkman e diversas fitas cassetes de Morrissey e The Smiths serviram como ponto de partida para que ele contasse a sua própria história no livro recém-lançado Quem vai ficar com Morrissey? – a “fábula real” de um casal que se separa e precisa repartir os bens, inclusive as músicas do ídolo, apresentado a ela por ele.

“Tudo parte de sentimentos e experiências que vivenciei, de histórias que me contaram, de pessoas que conheci. É realidade fictícia, ou ficção realista”, comentou Leal ao Paraná Online (Confira aqui a entrevista completa com o autor).

 Assim como o escritor norte-americano Nick Horby também contou os casos amorosos e musicais de Rob Fleming, que também passa por uma separação se ampara nos seus discos para superar aquela situação. “O Nick Hornby pode não ter inventado esse subgênero, que mistura cultura pop e relações humanas, mas é, sem dúvida, seu maior representante”, comentou o escritor.