Marco da literatura

Estudiosos e artistas celebram 450 anos de Shakespeare

Há 450 anos, São Paulo era uma missão jesuítica com pouco mais de cem habitantes. Não havia luz elétrica ou carros. A imprensa acabara de ser inventada na Europa. E a Inquisição da igreja Católica ainda vigorava para condenar os hereges.

Visto assim, o mundo era, em quase tudo, diferente do que conhecemos hoje. Mas foi nesse contexto, aparentemente tão distante, que o inglês William Shakespeare escreveu as obras que ainda hoje usamos para representar os conflitos e a complexidade humana.

Nascido em 23 de abril de 1564, o maior dramaturgo da história universal é tema, neste ano, de uma série de celebrações e novas montagens de sua obra. No sábado, 26, a cidade natal do escritor, Stratford-Upon-Avon, deve parar para receber uma procissão de fãs. Haverá festa durante dois dias. Entrega de flores no túmulo do escritor. Música, leitura de poemas e um grande almoço em sua homenagem.

Em Londres, as honrarias caberão ao Shakespeare’s Globe Theater. Com estreia marcada para esta quarta-feira, 23, Hamlet Globe to Globe cumpre temporada na capital inglesa e depois deve partir em uma extensa turnê mundial de dois anos. A ideia é que os 16 atores do elenco viajem para levar o espetáculo a 205 países, dos cinco continentes. Aqui, a montagem desembarca em novembro. Ainda sem data e local definidos. “O espírito de turnês, e de comunicar histórias para os ouvidos frescos, sempre foi central na obra de Shakespeare”, acredita o diretor artístico do Globe, Dominic Dromgoole. “Em 1608, apenas cinco anos após ter sido escrita, Hamlet foi encenada em um barco na costa do Iêmen. Apenas dez anos depois, já estava excursionando extensivamente em todo o norte da Europa.”

Em diferentes países e culturas, é a atualidade de Shakespeare que espanta e inspira criadores e estudiosos. Com uma toada muito próxima à que pauta as celebrações internacionais, os brasileiros também devem render suas homenagens ao bardo. “Mesmo nunca tendo deixado a Inglaterra, ele possibilitou que o público dos primeiros teatros de Londres, no fim do século 16, encontrasse uma estonteante gama de personagens vindos de mundos fantásticos, históricos e também terras modernas”, acredita Paul Heritage, professor da University of London e curador do Fórum Shakespeare, evento que reúne especialistas britânicos para discutir a atualidade do artista e chega a São Paulo no dia 7.

De acordo com Heritage, “ele deu vida a um ‘admirável mundo novo’ de ciência e tecnologia, e ousou engajar-se com os pensadores políticos e filósofos que estavam colocando o mundo conhecido de cabeça para baixo”. “Para dar asas às novas ideias e aspirações que estavam circulando, Shakespeare inventou mais de 1.700 palavras.”

Novas palavras implicam em novas maneiras de ver o mundo. Shakespeare viveu em um mundo em profunda transformação. E também contribuiu para alterar a maneira como os homens viam e se relacionavam com seu entorno.

Apenas no período romântico, no século 18, surgiria a noção de indivíduo como a conhecemos. Mas Hamlet já expressava à perfeição conflitos existenciais, falava do medo que temos da mudança e da dissolução do ser. Não importa quantos séculos tenham se passado, Ricardo III continua a ser a mais incisiva fábula já escrita sobre ambição desmedida e sede de poder. Muito antes da psicanálise, Otelo já falava do forte parentesco existente entre o desejo e a morte.

Para Harold Bloom, o maior crítico literário de nossa época, o dramaturgo não apenas representou as mais variadas personalidades. Ele “inventou” o que conhecemos como humano. Seus personagens são um mapa para desvendar paixões, angústias e fantasias que o homem, até então, não sabia possuir.

Dezenas de livros e tratados já foram escritos na tentativa de decifrar o “mistério” Shakespeare. Mas as respostas ainda não chegaram. “Por que isso aconteceu? Imaginação? Experiência? Nós não sabemos e nunca saberemos onde Shakespeare passou alguns anos de sua vida ou de onde ele tirou sua inspiração”, c,omenta o ator britânico Ian Flintoff, que estará nesta quarta-feira, 23, em São Paulo para participar de uma leitura de poemas shakespearianos.

Dedicado à obra do escritor há décadas, Flintoff participou da famosa montagem de Hamlet, no National Theatre, com Daniel Day Lewis e Judi Dench. Atuou com a Royal Shakespeare Company. Além de ter organizado a Shakespeare United, uma celebração paralela aos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012.

“Ele tem uma combinação única de profundidade, interesse, caráter, linguagem e poesia”, diz o intérprete, arriscando alguns palpites sobre o fascínio inesgotável do autor. “Fala para todas as idades de homens e mulheres, para todas as culturas e em todas as línguas. Seus personagens encontram seus modelos hoje, em 2014, tanto quanto em 1600.”

Na época em que viveu e mesmo nos anos seguintes à sua morte, Shakespeare era tratado com respeito e admiração, mas sem a distinção com a qual no acostumamos a vê-lo. Era normal, por exemplo, equipará-lo a outros autores de sua época, algo impensável hoje. Foi só algum tempo depois, relata James Shapiro no celebrado livro Quem Escreveu Shakespeare?, que o artista começaria a ser distanciado de seus rivais e tratado como divindade. Alvo de culto e devoção.

O fenômeno descrito por Schapiro permanece vivo. Outro dado surpreendente quando olhamos para o legado do escritor é a quantidade e a fidelidade de seus seguidores. Entre nós, a crítica teatral Barbara Heliodora ilustra bem o tipo de afeição que o autor de Romeu e Julieta costuma suscitar. “Conheci Shakespeare porque gosto de teatro. Mas acabei me detendo sobre sua obra por uma simples razão: é muito melhor que todos os outros”, diz Barbara, que é também tradutora e estudiosa de suas peças. “Ele une a beleza da forma com a do conteúdo. E olha para o ser humano sempre com amor. Tentando compreendê-lo e explicá-lo melhor.” Em agosto, a crítica lança Todas as Peças de Shakespeare. “Será uma espécie de introdução à sua obra”, observa. Na sequência, planeja também publicar um volume sobre o Teatro Elisabetano.

Outro dos aficionados brasileiros pelo criador inglês é o diretor Ron Daniels. Fundador do Teatro Oficina, Daniels emigrou para a Inglaterra em 1964 e, desde então, já dirigiu e participou de mais de 35 montagens de Shakespeare. “A gente fica pensando por que será que ele ainda faz tanto sentido. Talvez porque seja, ao mesmo tempo, muito íntimo e muito público”, diz Daniels, diretor honorário da Royal Shakespeare Company. “Está tratando de temas existenciais, mas expande isso para um universo maior, da política e da guerra. Suas histórias estão sempre falando sobre famílias, sobre pais, sobre filhos, sobre irmãos que brigam.” E todo o resto pode ter mudado, mas nisso – não importa quanto tempo passe – iremos sempre nos reconhecer.

No Brasil, autor só chegou ao palco nos anos 1930

Até o final dos anos 1930, quando Paschoal Carlos Magno inaugura o Teatro do Estudante do Brasil, no Rio de Janeiro, o Brasil pouco ou nada conhecia de William Shakespeare. Em 1938, uma versão de Romeu e Julieta, dirigida por Itália Fausta, abre os trabalhos do grupo. E também dá a largada para uma extensa lista de montagens shakespearianas que o País veria nos anos seguintes.

“O Hamlet com Sérgio Cardoso é certamente um marco nessa história”, considera a crítica Barbara Heliodora. “O Romeu e Julieta com o Grupo Galpão também merece destaque. Assim como os Dois Cavaleiros de Verona, do grupo Nós do Morro.”

Para além dessas lembranças, também conquistaram lugar na história do teatro brasileiro, a versão de Antunes Filho, em 1984, para Romeu e Julieta. E a interpretação de Raul Cortez como Rei Lear, na obra assinada por Ron Daniels, em 2000. Em 1982, a encenação de A Tempestade, realizada pelo grupo Pessoal do Despertar, fez história ao ocupar o Parque Lage, no Rio. Já na última década, a mais festejada montagem de Shakespeare é Ensaio. Hamlet. A peça da Cia. dos Atores tinha direção de Enrique Diaz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.