Histórias da mídia nacional

“Além de termos cometido a falta imperdoável de fazer a TV Globo, cometemos a injúria de fazê-la ruidosamente, nos divertindo à beça, rindo à beça, comendo e bebendo à beça, ganhando à beça, gastando à beça. Era inevitável e compreensível que tantos nos odiassem e nos agredissem verbalmente em tantas ocasiões, nos botequins e nos salões do Rio. Em São Paulo éramos ignorados.”

Luiz Eduardo Borgerth

Depois que as agências de propaganda descobriram que a televisão era um novo e próspero filão para vender os mais diversos produtos, infantis ou adultos, femininos ou masculinos, úteis ou superficiais, a conquista de uma concessão de TV passou a ser o mais cobiçado negócio do início dos anos sessenta do século passado.

Foi nesse período que o jornalista Roberto Marinho, com o respaldo de sua organização de jornais, experiência de 40 anos no mercado, vislumbrou que poderia erguer um império de comunicação, incentivado pelo amigo da Time-Warner, Andrew Heiskell, e entrou firme e forte no ramo em 1965, quando criou a TV Globo.

O estabelecimento de um império da mídia, principalmente em anos conturbados, de revolução e ditadura militar, gerou milhares de histórias, mitos, lendas e controvérsias que até hoje são discutidas em bares, redações e faculdades. È muito difícil diferenciar o verdadeiro da boataria, a conversa fiada do fato incontestável. Apenas uns poucos privilegiados que ajudaram a criar a TV Globo podem dizer o que aconteceu na realidade, durante os primórdios daquela emissora.

Luiz Eduardo Borgerth, uma das pedras de alicerce da empresa de tevê carioca, lançou, recentemente, o livro “Quem e Como Fizemos a TV Globo”. Não é um livro histórico e tampouco biográfico, com o próprio autor faz questão de salientar. Além disso, ele mesmo esclarece que esqueceu ou omitiu uma série de acontecimentos. Mesmo assim, se considerarmos que, livros históricos reveladores aparecem, por convenção, apenas 50 anos após os fatos, a obra prematura de Borgerth ajuda a entender um pouco mais sobre a saga da Rede Globo, Roberto Marinho e o polêmico poder que ela exerce na sociedade brasileira.

O autor reconhece sua falta de estilo e confirma que não tem pretensão de se tornar escritor. O tom do livro é o mesmo que um contador de “causos” utiliza em suas palestras pelos bares e churrascarias do Brasil afora. Além disso, Borgerth utilizou um modelo de roteiro cinematográfico para classificar os personagens – protagonistas, coadjuvantes, figurantes e extras -, as locações, cenografia e a equipe técnica. O que deixou o livro mais fácil e leve.

O período compreendido no texto é pequeno, 1965-1970, mas decisivo e fatal, pois lida com a vida de personagens importantes de dentro e de fora da emissora. Embora Borgerth fale deste ou daquele coadjuvante e dessa e daquelas histórias que aconteceram nos anos 70, ele não vai fundo em qualquer tema, mas assume seu ponto de vista em todos assuntos abordados. Por outro lado, Borgerth conta uma série de novidades e analisa cada um dos que trabalharam diretamente com ele.

Trecho do livro

“Doutor Roberto Marinho achava o Borgerth pretensioso, depois aprendeu a gostar dele e percebeu que estava enganado. Uma das idéias de Borgerth que não foram aproveitadas pelo Doutor Roberto, mas que lhe pedia que pusesse no papel, como, por exemplo, quando o dinheiro era muito. Quando o dinheiro é muito, o gasto é muito. Até aí, tudo bem. Acontece que já tendo todo o necessário sido feito para ganhar o dinheiro, os gastos desnecessários que vieram a ser feitos só podem comprometer o resultado atingido pelos necessários que já tinham sido feitos, colocando em risco a lucratividade da empresa, e não sabemos onde isso vai parar, donde concluía Borgerth o melhor era jogar o dinheiro fora e jamais aplicá-lo na empresa. Assim, propunha, já que eram criadas centrais às dúzias, a criação da Central Globo de Jogar Dinheiro Fora, abrindo um leque de opções nesta função, estabelecendo critérios, horários e hierarquias, diretores, gerentes, consultorias, terceirização, interatividade, ícones e nichos, todos focados para que o dinheiro jamais fosse gasto tentando melhorar a empresa, uma vez que, como todos sabemos, do topo, todos os caminhos conduzem para baixo; uma central cuidaria para que se jogasse dinheiro fora com elegância, eficiência e economia; com uma antiauditoria, para não haver perigo de alguém tentar gastar dinheiro melhorando a empresa, e, finalmente, fazendo rodízio não direção para não deixar esta delicada e invejável tarefa, adstrita apenas a alguns eleitos, digo, especialistas.”

Roberto Marinho foi um empresário que conseguiu uma parceria em 1965 com a ABC, maior empresa de televisão da época, do grupo Time-Warner americano. Borgerth elogia essa associação e mostra que o João Calmon da antiga TV Tupi e outros no futuro, jamais conseguiram qualquer negócio semelhante com os americanos. Com a obtenção dos lucros dos primeiros anos e a compra da TV Paulista em São Paulo, Marinho pode então iniciar seu império. O time era bom, composto pelo próprio Roberto Marinho, Walter Clark, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni (estes dois cuidavam da programação e do famoso padrão global) e o Joe Wallach, um americano enviado pela Time-Warner para avaliar o investimento.

Nos capítulos em que ele analisa os coadjuvantes, Borgerth menciona fatos que eram desconhecidos do público em geral, sobre os principais dirigentes de órgãos de comunicação do país. O ex-governador Paulo Pimentel e comandante, na época, do grupo de comunicação mais forte do Paraná, também merece uma longa explanação – vide quadro nesta página.

Entre os assuntos mais polêmicos, Borgerth, em várias partes do livro nega que a Globo tenha estado em comum acordo com os governos militares, entre 1965 e 1985. Na verdade, ele afirma que apenas dois presidentes, Médici e Castelo Branco foram amigos pessoais do Doutor Roberto Marinho. O autor era um fanático e entusiasta por televisão. Ele dá o devido crédito à competência de Walter Clark – o menino de ouro, o gênio da televisão -, e ao Boni, que ele considera o sujeito que fez a TV Globo, com sua cabeça, com suas mãos e frequentemente com os pés.

Um outro assunto importante é que a Globo, até hoje, sempre sofreu pressão dos intelectuais, dos banqueiros e da imprensa. Apenas o povo gostava da emissora. Mas o que deu mesmo o impulso inicial para que a TV Globo decolasse e se tornasse uma potência foi o fato do Calmon da Tupi pressionar o governo para que proibisse a empresa americana de possuir um negócio no Brasil. Muito bem, leis foram sancionadas e a Time-Warner não pode receber um centavo do lucro da Globo. Todo dinheiro ficou no Brasil.

Borgerth, apaixonado pela televisão e pelo negócio que ajudou a construir, declara sem floreios que Roberto Marinho era uma pessoa educadíssima, gentilíssima, amável, afável, como patrão pessoa e nunca foi visto levantando a voz, destratando um empregado, sendo grosseiro com quem quer que fosse ou enxertando em seu vocabulário palavras vulgares. O patrão era um inimigo de organogramas, de técnicos de administração. Ele não suportava reuniões com mais de duas pessoas e era indiferente a títulos e diplomas que lhe eram exibidos.

O livro de Borgerth é curioso, conta pelo menos alguns episódios inéditos do início da TV Globo, esclarece algumas dúvidas e fornece o devido crédito àqueles que sofreram nas mãos dos militares, e por causa do império avassalador que a emissora infligiu aos concorrentes.

Borgerth, que era o homem do comercial, como se diz em televisão, criou vários produtos para aumentar a lucratividade, mas entre todos as estratégias que ele inventou, destaque para a cobrança do governo pelo espaço no horário eleitoral obrigatório – uma jogada genial.

Trecho do livro “Quem e como fizemos a TV Globo”, páginas 141, 142 e 143.

Paulo Pimentel

O tema “Paulo Pimentel” poderia dar um capítulo, talvez devesse dar um capítulo, para que se conhecesse um episódio do regime militar senão único, pelo menos o único que sabe o Autor nesse estilo. O fato é que Paulo Pimentel, por nenhuma injunção política, era nosso afiliado no Paraná. Já tinha sido governador, apoiado o golpe de 1964, fundador da Arena etc. Costa e Silva tinha sido bom para Pimentel. Uma das suas concessões havia sido assinada por ele. Um belo dia, já na era militar, Pimentel se desentende, politicamente, com Ney Braga. Pouco tempo depois Ney Braga, que já tinha sido governador do Paraná, é ministro da Educação de Geisel e Armando Falcão, ministro da Justiça. Na eleição de 1974, vetado Pimentel como candidato do governo, Ney aponta outro que perde. Ney culpa o inimigo Pimentel que, preterido, teria ajudado a oposição, e exige que tire as televisões de Pimentel que, como se sabe, não podiam nem eram usadas politicamente. Se não tirarem as emissoras, que lhe tirem a programação da Globo, não faz por menos. Começa a pressão sobre Roberto Marinho, por meio do ministro da Justiça (até então) amigo dele. As ameaças são mirabolantes, quem avisa amigo é. Geisel odeia Paulo Pimentel, não se deterá diante de nada. Doutor Roberto consulta Walter, que aconselha a não ceder, não politizar as afiliadas, em pouco seríamos obrigados a afiliar e desafiliar ao sabor dos governos. Doutor Roberto afirma que não tínhamos idéia da pressão que estava sofrendo, que só estava podendo resistir graças ao “amigo” Falcão. Era 1975, Walter, sua namorada Gilda Saavedra e o autor destas sintéticas linhas estão em Los Angeles, convidados para assistir à entrega do Oscar. Joe Wallach, o único do nosso lado acompanhando o drama no Rio, junto ao doutor Roberto, dá a entender, pelo telefone, que não há nada a fazer. Cadê o doutor Roberto? Está em Angra (acho que) almoçando na casa do Braguinha. Esta cena é a mais marcante.

Deslumbrados com os milagres do mundo moderno (e de um Brasil em que não se conseguia falar com o vizinho pelo telefone), Walter fala de Los Angeles com Angra dos Reis, com a casa do Braga, no Frade ou redondezas, onde estaria Roberto Marinho! Não, não é possível salvar o Paulo; o governo já encaminhou o João Saad para comprar mas não chegaram a um acordo. Querem que o doutor Roberto tire a programação e se vire com ela, ou compre as estações. E assim foi feito. Doutor Roberto não queria comprar emissora nenhuma, almoçou com o Paulo e o Joe, apresentando uma proposta inaceitável para não dizerem que ele não quis comprar, e, estando o contrato vencido, tirou a programação do Paulo. A idéia do Paulo, segundo me disse há alguns anos, era vender tudo e sair do Brasil. Mas cadê comprador?

É possível que tenha havido, mas eu não sei de violência econômica igual no Brasil, cometida exclusivamente pelo ódio de um político menor, nem na ditadura Vargas. O ministro Ney Braga foi agraciado com a presidência da famosa Itaipu Binacional e já morreu. Paulo ficou mais rico de qualquer maneira, está vivo e retransmite o SBT. Sic transit gloria etc.

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