O escritor que era o pesadelo americano

O argelino Albert Camus – cuja frase, o suicídio é o único problema filosófico contemporâneo verdadeiramente sério, continua atual e insuperável – ganhou o Prêmio Nobel de Literatura por livros como A Peste e O Estrangeiro. Este último inspirado por um romance policial norte-americano chamado The Postman Always Rings Twice (O Destino Bate à Sua Porta), de 1934, escrito por James Mallahan Cain, também conhecido por James M. Cain. Na realidade, um dos primeiros livros deste escritor, que debutou tarde e escreveu outros 17 livros.

Cain era um autor de romances policiais. Um nome da constelação maior – ao lado de Dashiel Hammet, Raymond Chandler e David Goodis. Esta turma escrevia num estilo quente chamado hard-boiled. Cain é indigesto na constelação, porque além de duro e queimando, incluía temas que provocavam arrepios na moralista sociedade americana. Temas como incesto, adultério, parricídio, entre outros. Se os anos 20 e 30 já eram duros, Cain tratou de jogar carvão na lareira do demônio. Ele não tinha pudor de entrar no lado escuro da alma humana. E, por este motivo, foi chamado de ‘Dostoievski americano’. O Dostoievski original não teria reparos a fazer.

Esta falta de lero-lero na abordagem de temas tabus certamente atraiu Camus. Os meandros pantanosos da alma humana que Cain parecia conhecer tão bem são coisa que só se encontra no melhor Shakespeare. Isto deve ter acertado Camus em cheio, já que ele era escritor e filósofo da corrente existencialista, para o qual o homem é senhor de seu destino. E, certamente, refém dele – ou de seus atos. E não há nada mais existencialista que os tipos que povoam as histórias de James M. Cain. Suas novelas se desenvolvem em ambientes sórdidos, movidas por pessoas sem código moral definido – ou sem preocupação com códigos morais. Na maior parte das obras, uma mulher fatal arrasta um homem com passado nebuloso e suficientemente tonto para o crime -e ambos se ferram. Não é preciso ler todos os livros – ou ver os filmes que seus livros inspiraram -para confirmar.

Em O Destino Bate à sua Porta (em Portugal batizado de O carteiro sempre chama duas vezes, tradução menos lírica e literal) temos estes elementos. O romance rendeu cinco filmes – um deles na Itália, em 1942, por Luchino Visconti, chamado Ossessione, primeiro filme do diretor italiano e também considerado o primeiro do neo-realismo. E outro mais recente, na Hungria, conhecido por Szenvedély (1998), com direção e roteiro de György Fehér. A primeira versão foi francesa. Pierre Chenal dirigiu Le Dernier Tournant, em 1939, com roteiro de Cain. Esta versão ainda é conhecida em inglês com os títulos Dangerous Passion e The Last Turn e em português como Paixão Perigosa.

As versões clássicas mesmo são as duas americanas. A primeira com John Garfield e Lana Turner (1946) e a segunda com Jack Nicholson e Jessica Lange (1981). Nesta, sexo e sangue respingam na tela. Há tensão permanente. É o ser humano sem maquiagem, como seus antepassados nas cavernas. A diferença está no vestuário e nas habitações. O livro foi publicado em 1934, causando na sociedade americana o mesmo impacto que um sujeito sente ao levar um chute nas partes baixas. O livro foi condenado por imoralidade e proibido em Boston.

O que faz livro e filmes serem tão chocantes? A sordidez. O livro conta a história de um vagabundo, Frank Chambers, que se emprega num posto de gasolina de propriedade de um sujeito chamado Nick Smith, casado com uma dona mais jovem chamada Cora Smith. Cora é aquele tipo de garota bela e ordinária, que não se sente bem casada e quando Nick aparece em sua vida, abre a porta para ele entrar e fazer o que bem entender. O marido que se dane! O magnetismo sexual entre Frank e Cora é de voltagem tão alta que os dois concluem que só tem um problema na vida: o que fazer com o marido dela e patrão dele, que são a mesma pessoa. Ela tem uma boa idéia. Matar o cara. O resto é consequência.

E Cain não é um sujeito de idade avançada tentando impressionar o leitor com assuntos picantes em um de seus primeiros livros. Um ano depois de escrever a história do vagabundo e da dama ordinária, ele lançou ,Double Indemnity (Dupla Indenização), inspirado em fatos reais sobre um corretor de seguros -Walter Huff – que conhece Phyllis, mulher de um cliente, durante uma visita de negócios. Atraído pela dona, ele faz com ela um pacto de risco. Outro marido vai para o vinagre por conta de uma mulher ambiciosa e sem escrúpulos. E outro livro vai ao cinema por Billy Wilder, sob o título de Pacto Sangrento (Double Indemnity, 1944).

Em Serenata (Serenade, 1937), o cantor de ópera John Howard Sharp se apaixona por uma prostituta mexicana chamada Juana. Uma história de um artista em decadência destilando preconceito contra a cultura mexicana, com virulência que certamente hoje em dia não passaria pelos códigos politicamente corretos. Em A História de Mildred Piece (Mildred Pierce, 1941), Cain apresenta uma bela mulher de força inabalável e habilidosa na culinária. Ela supera problemas e a pobreza ocasionados pelo divórcio e ascende na escala social até uma confortável classe média. O diacho é que no universo de Cain – como no real – nada é perfeito. Mildred tem queda por sujeitos incompetentes e por uma filha manipuladora e sem escrúpulos. É claro que estes ingredientes não combinam com uma boa receita em nenhuma culinária.

Em A Borboleta (The Butterfly, 1944), o pai é tarado pela filha. A história de incesto pega fogo nas páginas – foi levada às telas em 1982 com Orson Welles no papel de pai, no penúltimo trabalho dele como ator. Até pela relativa escassez de incestos na literatura, o assunto causa desconforto em quem lê. Mas é humano e não é de hoje. A crônica policial está cheia de exemplos. E não só. Está na bíblia. Lot dormiu com as duas filhas – ou vice-versa. Elas o embebedaram para consumar o incesto. Na Grécia temos o exemplo clássico de Édipo e Jocasta. Pode não ser bom exemplo para ninguém, mas não é algo tão raro.

Católico de origem irlandesa, James Mallahan Cain sabia que a América não era o paraíso apregoado pelos moralistas. Os homens continuam fora do Éden, procurando escapar das tentações. Mas muitos continuam animais: dormem com as mães, outros com as filhas, outros roubam, alguns matam, numa eterna orgia de crime, sexo e violência. Foi este material que Cain trouxe para sua obra. Uma obra dura de digerir porque feita de pecados e pecadores. Lendo Cain, ninguém pensa em sonho americano, mas num pesadelo, que pode ser traduzido como o de todos nós.