Bacana mesmo é ser chique em Bacongo

Você sabe, garota! O último botão do blazer não se abotoa’. Quem diz não é um alfaiate italiano ou um costureiro francês, mas um sapeur congolês. Ele sabe tudo sobre elegância. Sabe que não se mistura três cores numa roupa, que não se veste colete por baixo de um casaco traçado, os sapatos devem estar impecavelmente engraxados, as meias em fio da Escócia e charuto é acessório imprescindível – e deve estar aceso. Claro, depois de autorizado pelos presentes, ainda que numa área de fumantes.

A maioria dos sapeurs não é rica. Ao contrário, é pobre. Mas tem guarda-roupa de dar inveja, porque um bom sapeur investe no vestuário e na elegância a maior parte do que ganha. Em alguns casos, acaba levando uns trocos para se apresentarem elegantes em eventos. Os sapeurs, definitivamente, viraram uma espécie de artistas nas capitais dos dois Congos – Brazzaville e Kinshasa. A ponto de merecerem pesquisa de dois anos do fotógrafo italiano Daniele Tamagni, para produzir um livro cujo nome é Gentlemen of Bacongo (Cavalheiros de Bacongo, Trolley Books, 224 págs, US$ 27), lançado em novembro passado.

Bacongo, no caso, é a definição ampla do grupo etnolínguistico Quicongo, originário do antigo Reino do Congo (cristianizado no século 16 e submetido à colonização européia no território dividido em Congos Belga e Francês). Este grupo envolve também o norte de Angola, nas províncias de Cabinda e Lunda-Norte, numa faixa junto ao rio Kwango. Mas, afinal de contas, o que vem a ser um sapeur? A expressão sapeur vem de Sape (Sociedade das Pessoas Elegantes, que, no Congo, ganhou uma versão com status de academia: Sociéte des Ambianceurs et des Personnes Élegantes).

Também chamados de dândis do Congo, os sapeurs têm regras de comportamento. Uma delas é não falar demasiadamente alto. Outra é se vestirem com elegância somente em ocasiões especiais. Para pertencer à sociedade, não deve misturar mais de três cores nas roupas e usar sempre meias de fios da Escócia. Para um sapeur, vestir bem alimenta a alma e dá prazer ao corpo. O sapeur acredita que quando ele se veste harmonicamente, ele não está apenas mostrando ser um sujeito elegante, mas um homem que dialoga com Deus através da elegância. Seria algo como uma Igreja Universal da Elegância de Deus. Hoje em dia uma boa parte dos sapeurs ou é formada por artistas ou é ligada à música.

A onda sapeur começou 1922, com André Grenard Matsoua. Ele foi o primeiro congolês a voltar de Paris e pisar em sua terra vestido como autêntico francês, nos trinques, da cabeça aos pés. Foi um rebuliço. Foi então que o congolês percebeu que ele também podia ser chique, podia vestir como francês e quem conseguisse seria admirado. Vestir bem virou um objetivo. Era uma forma de através da elegância e do vestuário adquirir um status igualitário numa sociedade dividida entre os colonizadores europeus e os colonizados africanos. Estava criada a ordem sapeur. Estava criada a elegância congolesa. E Matsoua passou para a história como o primeiro Grand Sapeur. Algo como São Pedro para o Vaticano.

O mais curioso é que Matsoua era um líder político e místico congolês que andou envolvido com o Partido Comunista. Ele até não foi influente enquanto vivo, embora tenha sido preso algumas vezes pela polícia colonial. No entanto, depois de sua morte em 1942, sua figura acabou servindo de símbolo de resistência. Hoje em dia a Matsoue Avenue é um dos pontos de concentração sapeur. Um dos lemas sapeurs é: ‘Os brancos inventaram estas roupas, nós botamos arte nelas’. A vida é isso, um constante aprimoramento.

Entre os anos 1972 e 1990, quando o antigo Congo Belga passou a se chamar Zaire, os sapeurs foram perseguidos pelo ditador Mobuto Sese Seko, que chegou a proibir as roupas ocidentais por serem colonialistas, embora sempre houvesse quem as usasse. Mobuto gostava mesmo era de se vestir com gorros de pele de leopardo, coisas do gênero, que o identificavam com um chefe tribal, causando calafrios nos refinados sapeurs de Kinshasa. O Congo enfrentou três guerras civis e o lema sapeur no período sempre foi o mesmo: “Vamos baixar as armas, t,rabalhar e se vestir com elegância”. Lema apregoado inclusive nos sermões na igreja, com apelos a não violência e a boa educação.

O maior sonho de um sapeur, além de um guarda-roupa fornido de roupas elegantes, caso contrário não será um sapeur, é ir a Paris e retornar chique como fez nos anos 20 o Grand Sapeur André Grenard Matsoua. Claro que aí já é mais complicado, mas sonhar nunca deixou de ser agradável exercício humano. Até impressiona o fato de ninguém ter se interessado por esta gente elegante para produzir um livro ou coisa parecida. Até recentemente, a única coisa que tinha visto sobre os sapeurs foi um documentário da finada Rede Manchete sobre música africana, isto nos anos 80. Lá pelas tantas aparecem sujeitos bem vestidos, preocupados com elegância, com etiquetas, com sapatos alemães e ternos italianos, conhecedores de tendências européias, em Nova York e Tóquio. Eram eles. Os sapeurs. Somente agora é que surge o livro de Tamagni, com prefácio do estilista inglês Paul Smith.

Nos dois anos – 2007 e 2008 -em que ficou no Congo para produzir o livro, Tamagni mergulhou no cotidiano sapeur. Acompanhou da escolha dos botões de punho aos passeios pelas ruas, como fossem estrelas de cinema ou integrantes de uma nobreza que não existe mais, incluindo o retorno para suas casas, quase sempre pobres. O fotógrafo se impressionou com a quantidade de roupas que os sapeurs têm, apesar da falta de dinheiro e também com o tempo que eles demoravam para se arrumar. Para se ter uma idéia do esforço dos sapeurs em se vestirem, um bom casaco custa perto de mil euros e é adquirido pelos sapeurs num país em que a renda anual é de US$ 150 (105 euros) em Kinshasa (Republica Democrática do Congo) e US$ 680 (aproximadamente 480 euros) em Brazzaville (República do Congo). Tudo para ficar chique.

“Fiquei maravilhado com o estilo único daqueles homens”, diz Tamagni. Para ele, as roupas luxuosas dos sapeurs funcionam como reflexos do sonho de cada pessoa de construir uma vida mais confortável – ou, numa interpretação coletiva, de trazer a seus países – os dois Congos -tão cheio de problemas, uma visão elegante e otimista da vida.

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