Kit Abdalla: um ser de múltiplas camadas

Na minha juventude, entre a leitura confusa da filosofia do Existencialismo e os conselhos de auto-ajuda de Dale Carnegie (1888-1955), com o seu best seller Como fazer amigos e influenciar pessoas, eu habitava o universo das dúvidas em torno do presente e do futuro. Parodiando Descartes, o Filósofo e Matemático francês (1596-1650) que cunhou a antológica frase ?Cogito, ergo sum: Penso, logo existo?, eu poderia muito bem dizer: ?Penso, logo hesito?. Mas, naquele confronto de idéias e pensamentos, eu encontrei uma terceira via: a célebre revista Reader?s Digest, criada em 1922 nos Estados Unidos, e que chegou ao Brasil 20 anos depois. Além de muitas e variadas seções, aquela publicação trazia a coluna ?Meu tipo inesquecível?.

Corria 1953, o ano do centenário da emancipação política de nosso Estado. Eu era aluno do Colégio Estadual do Paraná e assisti, enlevado, a apresentação do monólogo ?As mãos de Eurídice?, pelo notável ator Rodolfo Mayer (1910-1985), de extraordinário sucesso no Brasil e no exterior, com mais de 4.000 performances. Presente nas novelas de sucesso da Rádio Nacional, Rodolfo Mayer encarnava os tipos humanos mais controvertidos. Naquela época, a televisão somente existia em São Paulo. Em matéria de teatralização, a era do rádio proporcionava a idéia dos personagens, dos temas e dos cenários; a construção de tudo isso ficava por conta da imaginação que constitui a reserva indevassável da alma. Cantoras e cantores de sucesso: Emilinha Borba, Marlene, Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Silvio Caldas; programas de auditório: Manoel Barcelos e Cesar de Alencar, entre outros; programas humorísticos, a exemplo da PRK 30, de Lauro Borges e Castro Barbosa.

Foi, portanto, naquele tempo em que me fui envolvendo com a sedução do teatro, que aceitei o convite de Ary Fontoura para assistir, no palco do Colégio Estadual do Paraná, o one man show Kit Abdalla, com a caracterização de personagens célebres e humildes. Um fantástico contador de histórias, nas quais a fantasia comanda a realidade. Em um dos quadros do espetáculo, de sua produção e direção, ele anuncia a exibição de um famoso ?pianista polaco? que, como é natural, tinha o final do sobrenome em ki . Seria Moleski, Andreski, Shimaleski? Não lembro. Porém, recordo até hoje a grave inflexão de voz e a pausa na menção do nome de família. O público começou a rir. Kit sai do palco, que ficou vazio e à meia-luz durante alguns segundos. Volta, então, ele mesmo, agora assumindo em passos e gestos marciais a figura do violinista, com seu instrumento debaixo do braço. Sem falar nada, ele parou. Olhou fixamente para a platéia por alguns momentos, como se estivesse conferindo a presença de imaginários músicos da orquestra que iria acompanhá-lo, e iniciou, então, lentamente, os movimentos para abrir o estojo. Mais algum tempo de silêncio e expectativa. Em lugar do violino, sua mão traz de dentro uma banana. O ?artista? pausadamente come a fruta, após descascá-la sem nenhuma pressa. Mordida por mordida, foi-se a banana. As cascas são colocadas cuidadosamente no estojo, que é fechado com solenidade. O violinista olha novamente para o público, agradece com a mesura da cabeça e a dobra da espinha. Reassume a posição erétil e sai, passo a passo. Silêncio de segundos. O auditório acorda do estado de êxtase e explode em gargalhadas e palmas.

No final dos anos 50, havia notável fermentação cultural em Curitiba. A Biblioteca Pública, o pequeno auditório do Teatro Guaíra (Salvador de Ferrante), a Cocaco e o Museu de Arte Contemporânea do Paraná, assinalavam os pontos cardeais para se navegar pela quarta dimensão, através das artes plásticas, da literatura, do teatro e de outros endereços da imaginação e da realidade. Surgiam, fulgurantes, o Grupo Experimental de Operetas Paranaense (GEOPA), a companhia do SESI, com o inesquecível Aristides Teixeira, a Sociedade Paranaense de Teatro, fundada e dirigida por Ary Fontoura, o teatro de Roberto Menghini e o elenco de João da Glória. Durante o dia, o João, sorriso aberto, batia carimbo e vendia selos como funcionário dos Correios e à noite interpretava o sombrio traidor Judas Scariote , em A Paixão de Cristo. Ou encarnava, com pompa e circunstância, a figura romântica do Conde Danilo, da opereta ?A Viúva Alegre?. E Kit Abdalla transitava livremente naquele cenário fecundo de produções. As suas caracterizações de Caifaz (Paixão de Cristo) e de Niegus (A Viúva Alegre) foram magníficas e inesquecíveis. O talento da interpretação mostrava um personagem que, oprimindo a plebe romana para servir aos invasores, era completamente distinto da vida real do ator, que sempre foi um generoso semeador de amizades e um cultor de gestos de fraternidade.

Ali estava, bem próximo ao círculo de amigos daquele tempo, universitários, jornalistas, pintores, atores, o meu ?Tipo Inesquecível?.

Passaram os anos. Kit formou-se médico. Antes disso, produziu e interpretou, em 1953, a comédia mais original do ano (Volta Calouro), cujo script tinha somente duas frases e os expectadores se alternavam, alguns chegando e outros saindo do Colégio Estadual do Paraná, onde, à porta do teatro, viam uma enorme faixa com os dizeres: ?Volta calouro! Isso é trote?. E ninguém reclamou a devolução do preço pago pelos ingressos. A receita, aliás, foi bem aproveitada, segundo os comentários da semana: Kit fora visto com reluzente terno de linho branco, gravata da melhor marca, dançando com mulheres lindas que podia escolher com sua figura de galã e os passos de um quase profissional do tango.

Passaram os anos. De Francisco Beltrão, Kit Abdalla segue para Uganda; monta num camelo no Cairo; comparece a congressos científicos em vários lugares do Brasil e do mundo; fala com médicos na China e abraça crianças na Tanzânia; serve o Governo Jayme Canet Junior, dirigindo o IPE e vencendo a burocracia; através de um cartão de apresentação do amigo Ney Braga, conhece Paulo Pimentel e participa de sua campanha vitoriosa para a eleição de governador, em 1965; relaciona-se com outros políticos de prestígio no sudoeste e de outras regiões do Paraná; na Índia, fala com o titular da Pasta da Saúde e se entrevista com a sacrificada Ministra Indira Gandhi; está abraçado com o pai na festa do seu centenário de nascimento; é o tio querido do amado sobrinho, Edson Abdala, e o ex-aluno agradecido que nunca esquece o seu benfeitor: o notável e humanitário Doutor Moyses Paciornick.

E pelas viagens em torno da terra, do mundo e da vida, circula ao seu lado a memória suave e meiga de Marly. Presente nas palavras e linhas da autobiografia, em saudade e amor.

O seu telefonema de outro dia, falando e rindo ao mesmo tempo – como sempre – fazia um pedido: algumas notas para o seu livro autobiográfico. Pensei em escrever um texto simples e curto, para a orelha do livro. Mas a romântica e calma volta aos meus anos dourados da juventude não me deu opção: escrevi para o coração do autor.

Kit Abdalla, cidadão do mundo. Um ser humano de múltiplas camadas de sensibilidade e talento. Um tipo inesquecível.

* René Ariel Dotti, membro da Academia Paranaense de Letras e detentor da Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (proposta do deputado Osmar Seraglio – 2007)

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