Habeas corpus. Direito processual penal.

Habeas corpus. Direito processual penal. Trancamento da ação penal.  Inépcia da denúncia. Ocorrência. Ordem concedida.

 

“HABEAS CORPUS N.º 52.000 – MT
Rel.: Min. Hamilton Carvalhido
EMENTA

1. A denúncia, à luz do disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal, deve conter a descrição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a definição da conduta do autor, sua qualificação ou esclarecimentos capazes de identificá-lo, bem como, quando necessário, o rol de testemunhas.

2. Não se ajusta a seu estatuto de validade (Código de Processo Penal, artigo 41), a denúncia que imputa a prática de homicídio culposo de operário que deixou de utilizar os equipamentos de segurança em canteiro de obras, sem expor as razões pelas quais o acusado se investia da qualidade de garante (artigo 13 do Código Penal), a evitar o evento morte.

3. Ordem concedida”.
(STJ/DJU de 22/4/2008)

Se a denúncia imputa a prática de homicídio culposo de operário porque deixou de utilizar equipamentos de segurança em canteiro de obras, deve expor as razões pelas quais o acusado se investia da qualidade de garante para evitar o evento morte.

Decisão unânime da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Hamilton Carvalhido, com o seguinte voto:

VOTO

O Exmo. Sr. Ministro Hamilton Carvalhido (Relator): Senhor Presidente, habeas corpus impetrado contra a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso que, denegando writ impetrado em favor de Auri Anderson Konrad, preservou o curso da ação penal a que responde como incurso nas sanções do delito tipificado no artigo 121, parágrafo 3.º, do Código Penal, assim ementado:

“HABEAS CORPUS – TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL – MEDIDA EXCEPCIONAL – HIPÓTESE DE CABIMENTO NÃO CONFIGURADA – ORDEM DENEGADA.
De acordo com precedentes do Supremo Tribunal Federal, o trancamento de ação penal em sede de habeas corpus só pode ser admitido em caráter excepcional, nas hipóteses de atipicidade da conduta ou ausência de indícios de autoria, cujo reconhecimento não pode demandar exame aprofundado de provas.
Ordem denegada”. (fl. 206).

A inépcia da denúncia e a ausência de justa causa para a ação penal fundam a impetração.

Alega o impetrante que a denúncia “(…) não individualizou a conduta, nem informou qual teria sido a participação do denunciado no evento-morte da vítima. Na verdade, sequer mencionou, muito menos comprovou, a ligação do ora paciente com a conduta imputada (…) tampouco referiu ou comprovou que o paciente seria ‘proprietário’ da empresa Palmasola S/A Madeiras e Agricultura, muito menos que teria o mesmo agido ‘com negligência, porquanto não forneceu à vítima os equipamentos de segurança obrigatórios para a realização do serviço, no caso capacete, nem instruiu devidamente o empregado para o desenvolvimento da atividade’” (fl. 8).

Sustenta, ainda, que “(…) em nenhum momento do inquérito policial, seja nos depoimentos das testemunhas, do pai da vítima ou do paciente, o nome deste aparece como responsável, de qualquer forma, pelo falecimento da vítima” e que “o absurdo se mostra evidente, sobretudo, porque se trata de uma empresa sob a denominação ‘S/A’, ou seja, sociedade por ações, ou sociedade anônima, em que não existe ‘proprietário’, e sim acionistas, detentores de um maior ou menor número de ações, com maior ou menor poder de gestão (…) aliás, de se destacar que o paciente é administrador, contratado mediante relação empregatícia, à luz do art. 3.º, da CLT, e não acionista. Não há se falar, portanto, que detenha quaisquer poderes de gestão ou gerência, muito menos a respeito da vítima” (fl. 8)

Aduz, mais, que “(…) o Ministério Público não demonstrou (…) que a vítima estava sob subordinação do denunciado, muito menos que deixou de lhe fornecer equipamentos de proteção” (fl. 8).

Pugna, ao final, pela concessão da ordem, “(…) para trancar definitivamente a ação penal originária (…) em que é denunciado Auri Anderson Konrad” (fl. 46).
Concedo a ordem.

É esta a letra do acórdão impugnado:

“(…)
Observo, de início, que o trancamento da ação penal em sede de habeas corpus é admitido pela jurisprudência pátria em caráter excepcional, exigindo a cabal demonstração da ausência de justa causa, que decorre ou da atipicidade do fato ou da falta absoluta de indícios de autoria, cuja verificação não pode demandar profunda análise probatória.

Nessa linha, os julgados abaixo transcritos, todos do Supremo Tribunal Federal:
“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que não se tranca a ação penal quando a conduta descrita na denúncia configura, em tese, crime.” (2.ª Turma – HC 85424/PI – Relator Ministro Carlos Velloso – Julgado de 23/8/2005 – DJU de 23/9/2005).

(…)

No caso em tela, os impetrantes afirmam que falta justa causa para a ação penal: (a) porque não existem indícios de autoria; (b) porque a conduta do paciente não foi individualizada; e (c) porque houve violação ao artigo 41 do Código de Processo Penal, que estabelece os requisitos da denúncia.

Analisando a peça acusatória, não vislumbro nela os defeitos apontados pelos impetrantes, salvo, por óbvio, a falta do rol de testemunhas, falha grave, por certo, mas que não induz a inépcia. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci, ao comentar o artigo 41 do Código de Processo Penal, afirma que o rol de testemunhas é facultativo, ressaltando que “a obrigatoriedade, que vincula o órgão acusatório, é o oferecimento do rol na denúncia, razão pela qual, não o fazendo, preclui a oportunidade de requerer a produção de prova testemunhal”. (Código de Processo Penal Comentado. 3.ª edição. São Paulo: Editora RT, 2004. Página 143).

A denúncia impugnada, para imputar ao paciente o crime de homicídio culposo (artigo 121, § 3.º, do Código Penal), narra os seguintes fatos: “No dia 15 de junho de 2004, na Madeireira Palmasola, nesta Cidade, o denunciado Auri Anderson Konrad praticou homicídio culposo na modalidade de negligência, contra a vítima Elton da Silva Santos, produzindo-lhe traumatismo craniano severo, em decorrência das lesões descritas no auto de necropsia das fls. 05/09 do IP e mapa topográfico de lesões corporais da fl. 10 do IP, que causaram a sua morte.
Na oportunidade, a vítima trabalhava no barracão da serraria da madeireira mencionada, quando foi atingido por instrumento contundente não especificado no Inquérito Policial. A vítima foi prontamente socorrida, porém não resistiu e veio a falecer em decorrência das lesões.

O denunciado agiu com negligência, porquanto não forneceu à vítima os equipamentos de segurança obrigatórios para a realização do serviço, no caso capacete, nem instruiu devidamente o empregado para o desenvolvimento da atividade”.

Assim posta, tenho que a denúncia narra de forma satisfatória os fatos imputados ao paciente, permitindo o pleno exercício do direito de defesa. Tanto é assim, que a inicial deste writ apresenta uma série de argumentos em defesa do paciente. Ressalto, a propósito, que tais argumentos devem ser discutidos na ação penal e não em habeas corpus.

Os tribunais pátrios, em diversas oportunidades, admitiram a responsabilidade penal do empregador que deixa de fornecer ao empregado equipamento de segurança, conforme os seguintes julgados:

“A falta de justa causa para a ação penal só pode ser reconhecida quando, de pronto, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, evidenciar-se a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade. O fato de não constar, detalhadamente, a indicação do dever de cuidado violado pelo réu ou de qual equipamento de segurança poderia ter sido fornecido para prevenir ou evitar o desabamento do pesado fardo de algodão armazenado em pilha, que vitimou o funcionário da Empresa, não tem o condão de tornar a inicial inepta. Eventual omissão poderá ser suprida durante a instrução processual. A alegação de inépcia da denúncia só pode ser acolhida quando demonstrada inequívoca deficiência a impedir a compreensão da acusação e em flagrante prejuízo à defesa do réu – o que não se verifica in casu. Recurso desprovido”. (STJ 5.ª Turma – RHC n.º 13.732/MG – Relator Ministro Gilson Dipp – Julgado de 23/9/2003 – DJU de 28/10/2003).

“O fato dos responsáveis de uma empresa não treinarem adequadamente seus profissionais, bem como utilizarem-se de materiais – cabos de aço – em situação precária, sem a devida manutenção, além de não fornecerem os instrumentos adequados para o isolamento da área de trabalho, de forma a impedir o acesso de pessoas estranhas, denotam a existência de negligência e conduzem à previsibilidade do resultado. O Código Penal, ao adotar a conditio sine qua non (Teoria dos antecedentes causais) para a aferição entre o comportamento do agente e o resultado, o fez limitando sua amplitude pelo exame do elemento subjetivo (somente assume relevo a causalidade dirigida pela manifestação da vontade do agente – culposa ou dolosamente). ANÍBAL BRUNO a esse respeito nos ensina que “Dentro da ação, a relação causal estabelece o vínculo entre o comportamento em sentido estrito e o resultado. Ela permite concluir se o fazer ou não fazer do agente foi ou não o que ocasionou a ocorrência típica, e este é o problema inicial de toda investigação que tenha por fim incluir o agente no acontecer punível e fixar a sua responsabilidade penal”. Observando-se sob esse prisma, decorre a relação, ainda que tênue, de causalidade entre o comportamento da empresa, através de seus responsáveis, ao não fornecer instrumento de trabalho em condições mínimas de segurança e o resultado morte da vítima. Recurso desprovido”. (STJ 5.ª Turma – RHC n.º 9389/SP – Relator Ministro Jorge Scartezzini -Julgado de 4/4/2000 – DJU de 5/6/2000).

“Ementa: Apelação-crime. Homicídio culposo. (…) 2. Autoria. Réu que exerce atos de gestão da empresa, agregando poder decisório no plano fático, ao menos em tese, é passível de responsabilização criminal. Autoria provada. (…) 4. Culpa. Omissão voluntária quanto à instalação de equipamento de segurança obrigatório. Resultado previsível que, com o emprego da atenção e diligência devidas, poderia ter sido evitado”. (TJRS – Câmara Especial Criminal – Apelação Crime n.º 70002823425 – Relatora Maria da Graça Carvalho Mottin – Julgado de 31/1/2002).
Mesmo sem examinar as provas de forma aprofundada, evidencia-se no presente caso que o paciente era administrador da Palmasola S/A – Madeiras e Agricultura e que a vítima, empregada dessa madeireira, morreu de traumatismo craniano sofrido durante a jornada de trabalho, não estando, na ocasião, usando capacete. De acordo com os julgados transcritos, esses fatos permitem a instauração do processo criminal, configurando-se prematuro e impróprio o trancamento pretendido pelos impetrantes.

Face ao exposto, denego a ordem, em consonância com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, que ressalta ser “impraticável a descaracterização da justa causa, sem o exame aprofundado das provas, o que é inadmissível em sede de “habeas corpus’.”

É como voto.” (fls. 209/213).

E esta, a dos peremptórios termos do parecer do Ministério Público Federal, da lavra da ilustre Subprocuradora-Geral da República Deborah Duprat Macedo, que ora adoto como razões de decidir, litteris:

“(…)

Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário impetrado com o propósito de que seja trancada a ação penal a que responde o paciente, cuja denúncia lhe atribui a prática do delito definido no art. 121, § 3.º, do CP.
Sustentam os impetrantes ser inepta a denúncia, por não individualizar a conduta do paciente e tampouco esclarecer qual teria sido a sua participação na morte da vítima. Dizem que a empresa onde se deu o evento é uma sociedade anônima, da qual o paciente não é acionista, sendo mero administrador, sem poder de gestão ou gerência. Prosseguem afirmando que o órgão acusatório sequer mencionou que a vítima estava sob subordinação do paciente e que era este o responsável por determinar a utilização de equipamento de proteção. Apontam ainda inépcia decorrente do não oferecimento do rol de testemunhas e divórcio da acusação com as provas coligidas no inquérito policial.

A nosso ver, assiste razão ao impetrante.

A teor do § 2.º do art. 13 do CP, a relação de causalidade nos crimes omissivos impróprios é normativa. Não é qualquer comportamento omissivo que tem relevância penal, mas apenas aquele em que o omitente devia e podia agir para evitar o resultado, porque a lei assim o considera.

Disso decorre, ao menos no que interessa, duas conseqüências de fundamental importância: (1) é elemento essencial, nos crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão o dever de agir legalmente estipulado, circunstância que diz com a tipicidade; (2) o dever de agir, impedindo o resultado, surge da posição de garantidor, sendo, pois, característica da autoria.

De modo que o dado dever de agir tem que estar descrito na denúncia, sob pena de não se fazer possível conclusão sobre a tipicidade e a autoria do delito.
Diz a inicial acusatória, verbis: “No dia 15 de junho de 2004, na Madeireira Palmasola, nesta Cidade, o denunciado Auri Anderson Konrad praticou homicídio culposo na modalidade de negligência, contra a vítima Elton da Silva Santos, produzindo-lhe traumatismo craniano severo, em decorrência das lesões descritas no auto de necropsia das fls. 05/09 do IP e mapa topográfico de lesões corporais da fl. 10 do IP, que causaram a sua morte.

Na oportunidade, a vítima trabalhava no barracão da serraria da madeireira mencionada, quando foi atingido por instrumento contundente não especificado no Inquérito Policial. A vítima foi prontamente socorrida, porém não resistiu e veio a falecer em decorrência das lesões.

O denunciado agiu com negligência, porquanto não forneceu à vítima os equipamentos de segurança obrigatórios para a realização do serviço, no caso capacete, nem instruiu devidamente o empregado para o desenvolvimento da atividade”. (ff.78-79)

Está claro que o agente não produziu naturalisticamente o resultado; a acusação é de não tê-lo impedido. Todavia, a denúncia não revela por que estava obrigado a fazê-lo.

A falha, pelas razões já expostas, compromete em definitivo a inicial acusatória, razão por que opinamos pela concessão da ordem.” (fls. 224/225).
Pelo exposto, concedo a ordem, para trancar a ação penal, por inépcia formal da denúncia.

É o voto.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.