Cérebro do nariz

Numa memorável festa em sua homenagem, o advogado e jornalista Nireu Teixeira foi saudado pelo médico e jornalista João Dedeus Freitas Neto (antigamente os jornalista eram híbridos) com um discurso igualmente memorável.

Curitiba – começou Freitas Neto – tem muitos cheiros. Tem o cheiro da Confeitaria das Famílias; tem o cheiro das empadinhas do Caruso; tem o cheiro dos ipês da Praça Tiradentes; tem o cheiro do cafezinho da Boca Maldita; tem o cheiro de chope na vizinhança da fábrica da Brahma; tem o cheiro de cachorro quente na Carlos de Carvalho; tem o cheiro de cebola na Churrascaria do Erwin; tem o cheiro de filé na grelha do Bar Palácio; tem o cheiro de pipoca do Passeio Público; tem o cheiro de pão fresco da Padaria América; e foi em frente Freitas Neto, com o seu apurado olfato de quem conhece a cidade de olhos fechados, para finalizar com maestria:

– Curitiba, Nireu, te cheira! 

Essa bela oração me veio novamente à lembrança ao ler as memórias de Saul Steinberg (1914-1999), um dos maiores artistas do século passado, o cartunista nascido na Romênia e que ganhou o mundo através das capas da revista The New Yorker.

No notável pequeno livro ilustrado com alguns de seus desenhos, “Reflexos e sombras”, Steinberg revolve o nosso porão de guardados: “Nada do que é depositado na memória se perde, ela é um computador que continua acumulando dados a vida inteira, dados que nem sempre se utilizam, porque o homem muitas vezes parece um transatlântico que navega com apenas uma cabine ocupada”. Mesmo assim, segue o raciocínio do cartunista, cheiros depositados há tantos anos na memória são ressuscitados.

“De vez em quando, certos cheiros que não sinto desde criança retornam, não ao nariz, como um cheiro propriamente dito, mas ao cérebro do nariz; cheiros vagos e precisos ao mesmo tempo: cheiro de outono; de certas lojas; cheiro de começo de inverno, de início do frio: o primeiro fogo em casa, as luzes a partir das cinco da tarde. A estufa de metal, acesa pela primeira vez, tinha um cheiro peculiar, também porque a superfície fora untada para evitar a ferrugem. E sempre o cheiro do lampião de querosene. Gosto muito de sentir de novo esse cheiro, mas não é possível evocá-lo por um esforço de vontade. Mesmo assim, de vez em quando acontece que, de repente, por alguma razão misteriosa, a memória desse cheiro retorna”.

Apesar de não acendermos mais o fogo em casa e até o frio já não ter mais hora marcada para bater na porta, ontem começou o inverno. Com as luzes das cinco da tarde, qual o cheiro que agora chega ao cérebro do seu nariz?