Gente incomum

“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum.” Lula esqueceu de acrescentar: em qual país podemos encontrar outro líder que também tenha sido escritor? Só na Inglaterra, onde Benjamin Disraeli foi um romancista que virou primeiro-ministro.

Seria uma sandice confrontar o ex-presidente Sarney com o ex-primeiro-ministro Disraeli. É comparar o vinho com o vinagre, mas as biografias de ambos registram: o inglês era romancista, o maranhense escritor. Escritor, vírgula. Quando alguém nomeia José Sarney como escritor, é inevitável a presença de Millôr Fernandes, que em poucas palavras disse a verdade: “Não pretendo elevá-las a crítica porque nem eu sou crítico nem o senador pelo Amapá é escritor”.

Não se levando em conta a carimbada do mestre Millôr, colocar lado a lado Sarney e Disraeli só faz sentido para ressaltar o primitivismo político em que ainda nos encontramos. No século XIX, Disraeli foi um estadista. No século XXI, Sarney é um troglodita. Ou, digamos, um troglodita incomum. E para inglês ver como o Lula tem razão, se no Brasil tivéssemos algo semelhante à Câmara dos Comuns, Sir Ney seria o presidente da Câmara dos Incomuns. Com a prerrogativa de nomear a família maranhense para a Câmara dos Lordes, junto com o mordomo da filha.

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Depois de Winston Churchill, o judeu Benjamin Disraeli (1804 /1881) foi o mais famoso dos primeiros-ministros do Reino Unido. Não morreu pobre, mas quase. Morreu Conde de Beaconsfield, amigo íntimo da Rainha Victória, admirado e livre da fantástica dívida de 7 mil libras esterlinas que carregou ao longo da vida: “Aos vinte anos, estava atolado em dívidas tais que bem podia imaginar se algum dia poderia pagá-las. Perdeu ao mesmo tempo seus amigos, seu crédito, sua posição”.

Jovem de inteligência incomum, vaidoso e ambicioso (e se orgulhava de tamanha ambição), de repente Ben descobriu que esse mundo era mais difícil de lidar do que ele supunha. Mas, mesmo assim falido, perdeu quatro eleições antes de conseguir brilhar na Câmara dos Comuns. E só então se livrou dos credores que não o deixavam circular em paz pelos salões elegantes: “Mrs Brydges Willians falecera, deixando 30 mil libras para os seus velhos amigos; a soma permitiu pagar parte das dívidas. O resto não era tão preocupante, graças a Andrew Montagu, homem modesto e generoso, grande proprietário em Yorkshire, que, admirador de Disraeli, comprou as promissórias dos agiotas (perto de 57 mil libras) e fixou um juro único de 3%”.

Já primeiro-ministro do Império, quando a esposa Mary Anne morreu (cuja fortuna se resumia a uma renda vitalícia) até a casa em Londres passou para os herdeiros da família dela, e Dizzy (Disraeli) teve de se refugiar num hotel.

O querido amigo da Rainha Victória não ficou no olho da rua. Tinha uma grande propriedade no interior da Inglaterra, o refúgio do romancista, mas o vil metal nunca lhe foi simpático. Enquanto muitos contavam os tostões da fortuna, o intelectual Disraeli era generoso por natureza: durante sua primeira passagem no poder, em 1868, concedeu uma pensão aos filhos de John Leech, cartunista da revista de “Punch” que o atacara impiedosamente ao longo de trinta anos. Em 1874, o primeiro ato do todo-poderoso foi conceder a mais alta distinção que sua autoridade permitia a Thomas Carlyle, que no passado o chamara de “macaco ridículo”. Carlyle se referia à pele morena do filho de Isaac d´Israeli, o “judeuzinho” que conseguiu chegar ao “topo do pau-de-sebo” para comandar a poderosa ilha cercada de preconceitos.

Na igreja de Hughenden, junto ao túmulo do convertido católico Conde de Beaconsfield, a Rainha mandou erigir às suas expensas um monumento com um provérbio (16.13): “Reis apreciam quem diz a verdade”.

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É verdade: um escritor governou o Brasil. Bom se fosse verdade.