Gilda, um chute na cara

Nessa segunda-feira enviei para o blog do Solda algumas fotos da estréia da Banda Polaca no Carnaval de Curitiba de 1976. Ontem, o nosso cartunista publicou um dos retratos, com esse recado: ?Dante Mendonça: você me colocou numa fria. Manda uma legenda para a foto, pô! Tenho raiva dessa banda desde o dia em que vi Anfrísio Siqueira dar um chute na cara da Gilda quando ela tentava subir no carro em que ele se encontrava. Eu era mais o Bando do Porco, com gente mais civilizada?.

Foi uma coincidência. O que Luiz Antônio Solda não sabia é que naquela segunda-feira eu tinha sido entrevistado pelo diretor de cinema Yanko Del Pino e sua equipe, justamente para um filme que está sendo rodado em Curitiba sobre a Gilda. Outra coincidência foi que o meu depoimento para o filme se tratava justamente da participação do folclórico travesti na Banda Polaca, onde contei o episódio da agressão que a produção do filme desconhecia.

Só não contei que Anfrísio Siqueira, o falecido presidente da Boca Maldita, teria dado um chute na cara da Gilda. Não contei porque não vi. E não vi porque não poderia ter visto: eu abria o desfile com o estandarte da banda, enquanto a covarde agressão ocorria num dos carros da retaguarda. O que ficamos sabendo, depois da ressaca do dia seguinte, é que Gilda tinha sido surrada na Boca Maldita e retirada do desfile dentro de um camburão.

A covardia não causou só revolta, provocou também a criação da Banda do Porco: ?Sou porco, sou porco, sou porco chovinista?, este era o refrão da marchinha do porco – ?Tudo é suíno maravilhoso?, autoria de Sérgio Mercer, Solda e Ernani Buchmann.

O chute na cara da Gilda foi a extrema-unção da Banda Polaca. Ela morreu no dia 10 de janeiro de 1982, com papel passado em cartório, conforme a nota de falecimento enviada à imprensa: ?O presidente da Boca Maldita, Anfrísio Siqueira, reuniu os componentes da Banda Polaca e durante o encontro decidiram, em solidariedade aos recentes acontecimentos ocorridos na Polônia, tirar a denominação de ?Banda Polaca?, bem como atendendo a inúmeros pedidos de poloneses radicados em nosso estado. A nova denominação será ?Banda Vermelha e Preta?, conforme deliberação da diretoria reunida no dia 15 de dezembro de 81?.

Devo dizer que fui vice-presidente nomeado à revelia, porque não compreendo folia com registro em cartório, e já há alguns desfiles tinha retirado meu estandarte do bloco.

Para quem está chegando agora na avenida, Gilda era um chute na cara no moralismo da época. Foi um ícone da Rua das Flores, personagem histórico das ruas de Curitiba – assim entendo e assim deve constar no filme de Yanko Del Pino. Travesti em tempo integral, vivia de esmolas e do carinho do povo. Gilda morreu na miséria e na sarjeta, mas sua memória rendeu peças de teatro, está rendendo um filme – ninguém sabe, ninguém viu uma placa de bronze em sua homenagem que foi arrancada da Boca Maldita – e foi relacionada pelo Grupo Gay da Bahia como um dos ?100 desviantes sexuais mais célebres na história do Brasil?. Ao lado de Estêvão Redondo, primeiro homossexual degredado para o Brasil, em 1547, e dos cantores Francisco Alves e Cazuza, nosso personagem tem registro na história: ?Gilda, travesti mais folclórico das ruas de Curitiba, 1983?.