Consumidores superendividados: uma realidade em que todos perdem

Na área do consumo, o crédito fácil tem sido uma característica do comércio brasileiro.

Crédito é a troca de um bem presente por um bem futuro e quando concretizado de forma correta representa uma verdadeira bênção para a economia, pois serve a circulação das riquezas (objeto primordial dos contratos). Sua utilidade é imensa para as pessoas que individualmente fazem uso dele e também para a coletividade, mediante o progresso do país. Todavia, através do crédito, nossa realidade tem demonstrado o surgimento de muitas distorções prejudiciais aos envolvidos e também a coletividade. De forma resumida e sem exaurir todas as situações, comecemos por apontar a dação irresponsável do crédito, tanto por parte do comércio, quanto e principalmente, por parte dos bancos. Ela é um dos fatores responsáveis pelos altos juros praticados no país (a distorção é tanta que há empresas que menos se interessam em vender produtos ou serviços e mais em receber os juros do financiamento). Nesta circunstância, quem concede o crédito nem sempre se preocupa em avaliar detalhadamente as condições de solvência do cliente. A preocupação se centra apenas em ver se a correção monetária e os juros que estão sendo cobrados de todos, considerados aqueles que são honestos e pagam pontualmente, mesmo diante de uma possível inadimplência de alguns e do protecionismo do Judiciário para com os devedores, mesmo assim, na média, restará lucro para a empresa. Ou seja, os honestos acabam pagando pelos desonestos e, até por isto, dificilmente caem às altas taxas de juros praticadas no país.

Esta realidade do crédito fácil e dado de forma inconseqüente, dos juros altos, da prática de políticas de incentivo ao consumo que avaliam pela média (e não individualmente) as condições de solvência do consumidor, do exacerbado instinto consumista, do risco a que qualquer pessoa está sujeita quando não mantém uma poupança para imprevistos (o que é difícil para as classes menos favorecidas), da falta de responsabilidade por parte de quem recebe o crédito, da falta de cultura econômica do consumidor tornando-o presa fácil das técnicas de incentivo ao consumo, faz com que existam milhões de brasileiros superendividados (endividamento excessivo de particulares).

Com base no mês de julho passado, estatísticas revelam, por exemplo, que em São Paulo (maior capital do país), 55% das pessoas têm alguma dívida inscrita com seu CPF, sendo que 37,3% estão em atraso. Outro detalhe: 38% do total de consumidores declararam estar com a renda comprometida por mais de um ano.

Os devedores ao serem cobrados, por evidente, têm inevitável desconforto (quando não constrangimento vedado pelo Código de Defesa do Consumidor), além de perderem contas bancárias, ficarem sem acesso ao crédito e ao consumo muitas vezes necessário, e quando são pessoas responsáveis, se preocupando a tal ponto que acabam deteriorando suas próprias relações familiares. Dentre os honestos e responsáveis, é comum sofrerem abalos pelo excesso de preocupação, provocando mais gastos com saúde. Do mesmo modo, as relações de trabalho podem ficar comprometidas, principalmente considerando o que tange a diminuição da produtividade, ao relacionamento com os colegas e a maior incidência de acidentes motivados pela falta de concentração. Já para os fornecedores (indústria e comércio), as repercussões não são menores. A questão não se resume em apenas tentar receber o crédito e ver naquele que está superendividado, apenas a figura de um caloteiro que terá de ser cobrado perante uma Justiça taxada de paternalista, mas perceber que se trata de alguém que, por estar com as finanças descontroladas e inscrito num banco de dados de maus pagadores, se encontra fora (alijado) do mercado de consumo. Em brilhante artigo, Cláudia Lima Marques (Revista de Direito do Consumidor n.o 55, pág. 12), conceitua que o superendividamento pode ser definido como impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor leigo e de boa-fé de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, as oriundas de delitos ou de alimentos). Esse contexto que chega a afetar um número tão considerável de pessoas é classificado como condição de ?urgência social por dificuldades financeiras? e, por isto, nos países desenvolvidos, tem sido objeto de medidas interessantes e legislação específica ligada ao Direito do Consumidor. A preocupação em proporcionar meios para reestruturar a realidade financeira do consumidor e sem depender de medida judicial, recuperá-lo para poder participar novamente do mercado e ter maior tranqüilidade para viver, hoje é mundial. Exemplo significativo é o da Lei francesa justificada pela previsão de atender aproximadamente 200.000 famílias (atendida é a família em que se inclui o consumidor superendividado), mas que logo em seus primeiros anos de vigência superou a 650.000 famílias com reabilitação; podendo-se imaginar a utilidade de uma lei deste tipo no caso brasileiro. O simples fato de uma comissão (que não pertence ao Judiciário), fazer tecnicamente um planejamento financeiro para o consumidor (sua família) que se inscreve no programa, e negociando com os credores (que diante da confiança em receber concedem descontos e prazo) assumir a tarefa de reorganizar o caos que se instaura na vida de um superendividado, representa um excelente caminho de solução para essa problemática prejudicial a todos os envolvidos. Evidente que não são aceitas pessoas de má-fé e que é exigido do consumidor em recuperação, que respeite completamente o plano e as prescrições que lhe são estabelecidas, sob pena de ser desligado do programa.

Faz parte dos propósitos do Direito do Consumidor, buscar que aconteça o equilíbrio e a harmonia no mercado de consumo e, nesse sentido, a edição de uma lei brasileira institucionalizando a possibilidade de instalação de comissões dedicadas à reestruturação e recuperação financeira de consumidores superendividados, seria uma providência das mais auspiciosas. Boas experiências internacionais não faltam para nos servir de exemplo e inspiração.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Diretor do Brasilcon para o Paraná.

Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor – BRASILCON