São João, a festa do Sol comemorada no inverno

Ao observar as variações periódicas de clima ao longo do ano, o homem primitivo procurou associá-las ao movimento aparente do Sol no céu, descobrindo, com auxílio dos seus monumentos megalíticos, as direções do nascente e poente do Sol durante todo um ano. Com esses observatórios de enormes menires alinhados, os astrônomos da Idade da Pedra descobriram que o Sol, em quatro bem determinadas épocas do ano, nascia e se punha em quatro pontos diferentes do horizonte, que correspondiam ao início das estações – quatro grandes alterações climáticas.

Com tais conhecimentos, aproveitavam-se os sacerdotes das tribos primitivas para anunciarem e preverem o ponto exato do aparecimento do Sol no horizonte, o que lhes fornecia o poder de dominar seus discípulos ou crentes. Mais uma vez, o conhecimento – o saber do cosmo – iria ser usado para favorecer os governantes. Assim, criaram-se os altares de menires e, mais tarde, as catedrais de pedra, onde os sacerdotes, que já haviam previsto a ocorrência daqueles fenômenos astronômicos, solicitavam aos crentes com antecedência a necessidade de alguns atos religiosos com os quais seria possível alterar os desígnios da natureza.

Assim, a descoberta dos solstícios deu origem às festas coletivas nas quais o Sol era honrado com o fogo, a luz suprema, que o homem oferecia às divindades pagãs.

Surgiram, desse modo, duas festas delicadas ao fogo: a festa de verão, que tem lugar no solstício de verão, em 21/22 de junho, e a outra de inverno, em 21/22 de dezembro. Em virtude da inclemência do clima, em dezembro, nos países do hemisfério Norte, a festa de São João passou a ser a mais praticada. Por uma transposição essencialmente cultural, os povos do hemisfério Sul passaram a comemorar a festa do Sol, em junho, durante o dia de São João. Esta manifestação pagã, atualmente dedicada a um santo da Igreja Católica, atravessou milênios sem sofrer grandes alterações, pois o culto do Sol, através do fogo, permaneceu profundamente associado à mente humana. É a procura do Sol, ente máximo da verdadeira renovação de vida, a que assistimos diária e anualmente.

Na realidade, todas essas festas célticas sazonais datam do Neolítico e estão intimamente ligadas ao conhecimento dos equinócios e dos solstícios. Constituem um prolongamento dos rituais agrários que marcavam as estações do ano.

Estudando o calendário lunissolar dos celtas, descobrimos a existência de quatro festas ao longo do ano. Todas essas comemorações dão lugar a ritos religiosos, assim como a diversões e jogos, alguns dos quais atravessaram os tempos e chegaram até os nossos dias, como tradições do rico folclore dos povos de todo o mundo.

Para os habitantes do hemisfério Norte, onde tiveram origem quase todas as festas e comemorações sazonais do mundo ocidental, a correspondência das estações é oposta. Assim, quando durante o solstício do verão se comemora a festa do Sol, com as fogueiras de São João no hemisfério norte, com todo acerto; ao contrário, no Brasil comemoramos o mesmo acontecimento, se bem que aqui estejamos no inverno. Trata-se de uma dependência à tradição cultural boreal.

Apesar das imagens solares de Cristo estarem em geral associadas ao levante do Sol, os cultos solares não foram totalmente assimilados pelo cristianismo. Convém recordar aqui a profecia de Zacarias, pai de São João Batista, anunciando a chegada de Jesus: "Deus trouxe do alto a visita do Sol levante, com a finalidade de iluminar aqueles que estão nas trevas e nas sombras da noite". Assim os primeiros cristãos viram a imagem profética de Cristo no Sol, como anuncia o livro de Malaquias. Todavia, é na liturgia e no culto católicos que iremos encontrar os sinais de uma mitologia solar. Com efeito, no momento das orações a Deus, os cristãos voltavam-se para o leste, em direção ao nascer do Sol. Por este motivo, as primeiras igrejas adotaram a tradição dos templos gregos e romanos, que tinham sua fachada voltada para o nascente. Mais tarde, percebeu-se que esta disposição tornava muito difícil o posicionamento, nas igrejas, dos fiéis que vinham orar e dos sacerdotes que oficiavam as missas. Em conseqüência, desde o início do século IV, não se orientaram mais as fachadas, e sim os ábsides – cabeceira das catedrais católicas, onde fica o altar-mor – que passaram a ser dirigidas para o levante.

Durante os primeiros ritos de batismo, o sacerdote começava sua ação voltado para o oeste, com o objetivo de recusar o demônio, que dominava o poente, lado mais próximo à noite. No fim da cerimônia batismal, voltava-se para o leste, onde surge o dia, que estava associado à imagem de Cristo. Não existe dúvida de que o cristianismo soube integrar-se às festas pagãs, aproveitando os hábitos e tradições dos povos primitivos para lhes dar uma nova roupagem conveniente aos seus objetivos religiosos. Na realidade, os dirigentes cristãos tiveram muito mais sucesso com o solstício do inverno, instante em que o Sol atinge o ponto mais baixo de seu curso no céu, em substituir as celebrações pagãs deste momento pela natividade de Cristo, do que com o solstício de verão. Na realidade, em 24 de junho o cristianismo festeja o nascimento de São João Batista, que batizou Jesus. Existe uma lenda que sugere que esse evento precedeu em um ano o de Cristo, pois a mensagem de um anunciou a chegada do outro. Assim, situados no momento de dois solstícios, a celebração desses nascimentos dividem o ano em duas partes iguais. Para justificar a data de 24 de junho, a Igreja usou de uma imagem solar, quando, falando de Jesus, do qual se dizia o precursor, São João Batista teria dito: "necessário que ele cresça para que venha a diminuir", numa referência ao fato dos dias diminuírem após o solstício do verão.

No século passado, na Franca, era hábito, ao pôr do Sol do dia 23 de junho, cada habitante da cidade levar lenhas para uma enorme pirâmide de gravetos que se construía na praça principal. Ao anoitecer, o pároco de igreja mais próxima chegava em procissão e ateava fogo a pirâmide de madeira. Os chefes de família passavam pela chamas um ramo de flores que, na manhã seguinte, antes da aurora, era colocado na porta do estábulo. Só depois deste ritual, os jovens podiam dançar ao redor do fogo e em seguida saltar por cima das brasas, cujos restos eram levados para casa. No dia seguinte, ao anoitecer, levavam para o alto de uma colina um enorme cilindro de palha.Com uma longa vara, guiavam o cilindro em chamas, durante a sua descida. Quando a roda de fogo passava, as mulheres e as moças que haviam ficado em casa à espera, gritavam saudando os homens e o fogo. Nas regiões montanhosas, é hábito ainda subir, antes da aurora, no dia 24 de junho, aos pontos mais elevados das colinas, para esperar o nascer do Sol. Quando o astro aparece, grita-se de alegria. Nos vales vizinhos, os sinos das igrejas começam a soar, acordando toda a população. Os que estavam esperando a chegada do Sol, nas colinas, voltam para as cidades com ramos de ervas aromáticas as quais atribuem virtudes de cura aos doentes.

As tradições folclóricas das festas pagãs de São João, em 24 de junho, possuem até hoje ecos mais pagãos e místicos que todas as outras.

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é pesquisador-titutar do Museu de Astronomia e Ciências Afins, do qual foi fundador e primeiro diretor, autor de mais de 80 livros, entre outros do "O Livro de Ouro do Universo". Consulte a homepage: http://www.ronaldomourao.com

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