Assassinatos em série de mendigos: tolerância zero ou crimes do ódio?

Os estarrecedores assassinatos em série de vários mendigos na cidade de São Paulo seriam fruto do movimento “tolerância zero” ou manifestações dos denominados “crimes do ódio”?

O movimento político-criminal denominado “tolerância zero” nasceu no princípio dos anos noventa em Nova York, por obra do então prefeito Giulliani e de seu assessor o criminólogo William Bratton. É “filho” de um outro movimento (norte-americano) mais amplo, chamado “da lei e da ordem”. Seu objetivo principal: “varrer as ruas da cidade”, “limpar o lixo da rua” (incluindo-se nesse “lixo” os mendigos, prostitutas, vadios, bêbados, menores abandonados, drogados, emigrantes ilegais etc.). Bandeira levantada: nenhuma janela com vidros quebrados (broken windows), todas fachadas pintadas etc..

Criminalização dura da pobreza mediante o endurecimento da atuação policial contra esses grupos de pessoas marginalizadas. A origem da violência urbana e da insegurança pública residiria nos pequenos delitos bem como nos desvios de pouca monta. A sociedade é muito tolerante com esse tipo de delinqüência e de delinqüentes. Urgem medidas repressivas duras, assim como o encarceramento de boa parte desses excluídos. O excluído econômico-social tem que ser excluído uma segunda vez: da convivência social. É um “lixo” e deve ser varrido.

Em Nova York o tolerância zero produziu, por algum tempo, alguns resultados positivos: os números da criminalidade diminuíram, a sensação de segurança da população aumentou, o prefeito foi reeleito, ganhou fama mundial etc.. Mas um dos fatores mais relevantes (para o sucesso do empreendimento) e que quase nunca é noticiado foi a fortuna (incalculável) gasta pelo poder público com o aprimoramento da estrutura policial, aumento de salários, construção de centros de lazer para crianças e adolescentes, escola para todos, empregabilidade quase total dos desocupados etc..

Parte dos milhões de dólares utilizados foi para a manutenção de milhares de excluídos dentro dos presídios. Como muitos deles são privatizados, quanto mais recolhidos melhor. Cerca de seis milhões de pessoas são empregadas hoje pelo sistema penitenciário dos E.U.A.. Mais ou menos quinze milhões de pessoas vivem dessa fonte de renda. A economia americana gira também em torno disso. E de onde vem tanto dinheiro? Como diz o Professor Zaffaroni, eles contam com a máquina de fabricar dólares. Déficit público não é problema para os norte-americanos. Rodam a máquina, fazem dólares e conseguem movimentar a economia, ainda que custando a liberdade de muitos marginalizados.

De qualquer modo, ainda que essa tendência político-criminal deva ser taxada de absurda, discriminatória, preconceituosa, certo é que nunca chegou ao extremo de pretender eliminar fisicamente os mendigos. Essa destruição em massa é mais típica de grupos nazistas, que vivem para espalhar o ódio e o terror. Aliás, há cerca de 500 grupos só nos E.U.A. e, na atualidade, mais de 2.000 sites existem para difundir a discriminação contra judeus, miseráveis, homossexuais etc.

Aos mendigos associam-se idéias de fracasso, analfabetismo, alcoolismo, inaptidão para o trabalho. Eles constituem, vamos dizer assim, o lado negativo do sucesso. Nunca foram respeitados como pessoas. E agora estão sendo destruídos em massa. A compaixão com a desgraça alheia está se esvaindo. Sentimentos negativos contam no momento com uma força inigualável: ódio, intolerância, desrespeito. Até onde vai a barbárie humana?

O assassinato em série de mendigos, como se vê, tem muita coisa a ver com a ideologia do movimento tolerância zero. Revela, pode-se dizer, sua faceta extremista, nazista (que não é admitida, ao menos publicamente, pelos órgãos oficiais) e exprime o que se chama “crime do ódio”.

Crimes do ódio são crimes impelidos pelo ódio decorrente de idéias preconceituosas, racistas, discriminatórias e intolerantes. Transmitem tais crimes mensagens aos demais membros do grupo atingido: sumam, desapareçam! Espalham, desse modo, o terror, causam medo, apavoram, produzem efeitos psicológicos aterrizadores, geram pânico. Os autores dos “crimes do ódio” matam por matar, sentem prazer fazendo isso, sentem-se “guerreiros” limpando a face da Terra de seus indesejáveis “lixos” (Alba Zaluar, Folha de S. Paulo de 29.08.04, Mais!, p. 3).

O mais chocante é saber que esses algozes, muito provavelmente, acham-se (do ponto de vista econômico) bem perto dos mendigos assassinados. Seria então uma tresloucada vontade de apagar a imagem de seu próprio futuro de miserável, tal como sustentou Contardo Calligaris (Folha de S. Paulo de 26.08.04, p. E8)? Será que o massacre de quem nada tem não teria como motivação mais profunda a vontade insuperável de destruir a imagem de um destino iminente (de se converter em um miserável)?

Os crimes, em geral, como se nota, constituem verdadeiros enigmas. Daí talvez a compulsiva paixão que o ser humano (?) devota frente a tanto derramamento de sangue.

Luiz Flávio Gomes

é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), Consultor e parecerista e diretor-presidente da TV Educativa IELF (1.ª TV Jurídica da América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo país –
www.ielf.com.br).

Voltar ao topo