Medidas cautelares penais (Lei 12.403/11). Novas regras para a prisão preventiva e outras polêmicas

1. Introdução

A recente aprovação da Lei 12.403/11 trouxe importantes alterações no sistema de cautelares pessoais no processo penal. O numero e a natureza das medidas, sua forma de aplicação e uma série de instrumentos de controle sobre sua duração são temas que merecem atenção.

Antes de tratar da lei em si, vale destacar que sua aprovação revela a crescente importância que assumem as medidas cautelares processuais, tanto na esfera civel quanto na penal. O fenômeno da cautelarização é comum a todas as áreas de jurisdição. A notória morosidade da Justiça, que estende em demasia o lapso temporal entre a demanda e a decisão definitiva provoca a antecipação dos atos processuais. A ânsia social pela solução das demandas, a angustia dos magistrados em tornar efetivas as decisões tomadas, e a constatação de que a lentidão desprestigia os mecanismos formais de resolução de litígios, valorizou a figura da cautelar, com conseqüências positivas e negativas para o sistema judicial e para os jurisdicionados.[1]

Percebe-se um deslocamento do núcleo do processo. Se antes as sentenças eram o centro em torno do qual giravam os atos processuais, hoje o ponto nelvrágico do litígio é a liminar e a antecipação de tutela. O objeto da disputa deixou de ser a sentença final favorável – distante no tempo – mas a antecipada prestação jurisdicional cautelar, cuja precariedade deixa de ser relevante diante da longa vigência. Da mesma forma, os atos de impugnação às cautelares – civis e penais – também substituem os recursos ordinários em importância e numero. Os agravos e habeas corpus tomam o lugar das apelações, com conseqüências importantes para o aumento da litigância e do numero de processos nos tribunais. Enfim, parece que parte significativa da vida processual foi deslocada para o início do litígio, antecipada, ao mesmo tempo em que as decisões definitivas finais se tornaram apenas um desfecho longínquo e sem interesse, dada a usual inoperância de seus efeitos, mitigados pela passagem do tempo.

É natural que o fenômeno da cautelarização do processo tenha chamado a atenção do legislador, que passou a alterar as regras atinentes à questão. No processo civil, inúmeras e recentes leis tratam do tema, como a aprovação das regras de execução de títulos judiciais e extrajudiciais, que fortaleceram a execução provisória como instrumento de valorização das decisões judiciais de primeiro grau (Lei 11.232//2005 e Lei 11.382/2006).

No processo penal, no entanto, o uso de cautelares é mais delicado, diante de sua natureza pessoal. Tais medidas afetam a liberdade de locomoção e a intimidade, mais que o patrimônio, daí a necessária prudência em sua aplicação. Mas nem por isso o mesmo fenômeno percebido no processo civil deixa de se revelar. As prisões cautelares e os respectivos habeas corpus tem mais destaque do que sentenças e apelações, e o fenômeno da execução provisória apenas recentemente deixou de ser reconhecido diante da presunção constitucional da inocência.

Nesse contexto, a Lei 12.403/11 merece toda a atenção, porque trata justamente das cautelares pessoais no processo penal.

2. Excurso histórico

Em breve síntese histórica, a proposta aprovada foi apresentada – em conjunto com outras sete propostas de reforma pontual do CPP – em janeiro de 2001 pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. Tais projetos propostas foram elaborados por uma Comissão formada por juristas membros do Instituto Brasileiro de Direito Processual (Ada Pellegrini Grinover, Petrônio Calmon Filho, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Jr., Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti, Rui Stoco, Rogério Lauria Tucci e Sidnei Benetti), instituída em fevereiro de 2000 no âmbito do Ministério da Justiça.

Em 2004, o projeto em discussão e alguns outros apresentados pela Comissão Pellegrini foram apontados como essenciais à modernização do processo penal pelo 1º Pacto por um Judiciário mais Rápido e Republicano, um compromisso firmado pelos chefes dos três Poderes da República para racionalização da prestação jurisdicional. Mesmo assim, a proposta ainda foi objeto de intensos debates e discussões até ser aprovada nesse ano, e sancionada como Lei 12.403/11.

A nova lei reformula as regras sobre as cautelares no processo penal, e amplia o número de medidas possíveis. A norma não trata das cautelares reais, que asseguram bens para a reparação do dano e para a satisfação das obrigações dos condenados – como arrestos e seqüestros – mas apenas das cautelares pessoais, relacionadas com o réu e com o efeitos de seu comportamento para a ordem processual.

A redação anterior do Código apresentava ao magistrado uma medíocre dicotomia no campo das cautelares pessoais. O juiz não dispunha de alternativa para assegurar a ordem processual e a aplicação da lei penal a não ser a prisão preventiva. Era a prisão ou nada. Alguns magistrados ainda lançavam mão de outros instrumentos, como a retenção de passaportes ou a proibição de freqüência a determinados lugares, mas a aplicação destas cautelares inominadas sempre foi polêmica e cercada de suspeitas sobre sua legalidade.

A nova redação do Código apresenta uma gama de medidas cautelares pessoais diferentes da prisão para assegurar a ordem processual. Não são medidas originais ou estranhas ao nosso ordenamento. Parte delas já estava prevista na legislação penal pátria, seja como sanção restritiva de direitos – como a proibição de freqüentar determinados lugares – , seja como espécie peculiar de cumprimento de privação de liberdade – como a  prisão domiciliar.

Essa superação da medíocre dicotomia  – prisão ou nada –  protege de forma mais efetiva o processo, o acusado e a própria sociedade. O processo, porque surge um novo rol de medidas de resguardo à ordem dos trabalhos. O acusado, porque a prisão cautelar, ato de extrema violência, será a extrema e última opção. A sociedade, porque a redução da prisão cautelar significa o desencarceramento de cidadãos sem condenação definitiva, que eram submetidos desde o início do processo ao contato nefasto com o submundo de valores criados pela cultura da prisão. VON LISZT, em 1811, já afirmava que as prisões não corrigem, não intimidam nem põe o delinqüente fora do estado de prejudicar, e pelo contrário muitas vezes encaminham definitivamente para o crime o delinqüente novel[2]. A situação continua a mesma dois séculos depois, e diante do fato que no Brasil cerca de 152 mil homens e mulheres são presos provisórios,[3] as medidas de desencarcerização parecem mais do que adequadas e recomendáveis.

Passemos, então, à análise da lei

3. Prisão cautelar

A legislação processual penal brasileira passa a contar com as seguintes cautelares pessoais: prisão cautelar (art.283 e ss.), prisão domiciliar (arts.317 e 318), e outras cautelares diversas da prisão (art.319): comparecimento periódico em juízo, proibição de acesso ou freqüência a determinados lugares, proibição de manter contato com pessoa determinada, proibição de ausentar-se da comarca, recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga, suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira, internação provisória, fiança, monitoração eletrônica.  

Comecemos pela prisão cautelar.

O primeiro aspecto que merece destaque é a consagração da ultima ratio da prisão cautelar. Ainda que a natureza excepcional desse instrumento fosse evidente, é  importante que o legislador caracterize expressamente a privação da liberdade como a ultima das medidas, aplicável apenas diante do insucesso das demais.  Por isso a redação do novo art.282, §6º, dispõe: “A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”, o que impõe ao magistrado, ao determinar a prisão preventiva, a exposição dos motivos que a justificam e das razões pela qual entendeu que todas as demais cautelares são imprestáveis para substituí-la no caso concreto; do contrário, a decisão será nula, por ausência de fundamentação completa.

Com o fim da execução provisória na seara penal (agora expressa no art.283), restam apenas três hipóteses de restrição de liberdade antes do trânsito em julgado da condenação: (i) prisão temporária (Lei 7.960/89), (ii) prisão em flagrante (CPP, art. 301), (iii) prisão preventiva (CPP, art. 312), sem contar as conduções coercitivas, que alguns consideram prisão.

A prisão temporária não sofre alterações – ficam mantidas as regras estipuladas na Lei 7.960/89.

3.1 Prisão em flagrante

As hipóteses do flagrante também são mantidas. No entanto, diante da noticia do flagrante o juiz deverá optar por (i) relaxar a prisão, caso seja ilegal; (ii) converter a prisão em flagrante em preventiva, se presentes os requisitos do art.312 do CPP, ou (iii) conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança. Ainda que, à primeira vista, não exista grande diferença com o sistema anterior, a nova redação deixa clara a impossibilidade da coexistência, no mesmo processo, da prisão em flagrante e da prisão preventiva. Com isso, com exceção dos casos de prisão temporária (hipóteses da Lei 7960/89) o réu privado de liberdade no processo ou está preso em virtude do flagrante – situação efêmera que dura no máximo 24 horas, até a primeira apreciação judicial – ou em prisão preventiva, o que evita a estranha, inusitada, mas recorrente situação anterior, na qual o magistrado revogava a prisão preventiva pela ausência dos requisitos do art.312 e o réu continuava preso pelo flagrante inicial.

3.2 Prisão Preventiva

As regras da prisão preventiva sofrem alterações

As hipóteses para a decretação da preventiva continuam explicitadas no art. 312, que manteve a redação anterior. Portanto, a decretação dessa cautelar tem por objetivo: (i) garantia da ordem pública, ou (ii) garantia da ordem econômica, ou (iii) conveniência da instrução criminal, ou (iv) assegurar a aplicação da lei penal. Presente um desses elementos é possível a preventiva, desde que (i) haja prova da existência do crime e (ii) indícios suficientes de autoria.

Mas há um requisito adicional para a decretação da preventiva, inexistente na redação anterior: a demonstração da ineficácia ou da impossibilidade de aplicação de qualquer outra cautelar para alcançar os fins estabelecidos no caput do art. 312, como dispõe o art. 283, § 1.º. Assim, não basta ao magistrado apontar um dos requisitos do art.312, mas deverá também assentar as razões pelas quais entende incabíveis outras cautelares distintas.

3.3 Prisão preventiva e ordem pública

É bem verdade que a Lei poderia ter ido além, e enfrentado  um dos pontos mais polêmicos e controvertidos da prisão cautelar: a prisão preventiva para a garantia da ordem pública. A legitimidade da prisão, nestes casos, é constantemente questionada diante da falta de clareza sobre o significado, o sentido e a extensão do termo ordem pública. Gomes Filho, com propriedade, aponta que a abertura interpretativa do termo dificulta a própria motivação da decisão e afirma: “Esta tarefa (motivação da decisão da preventiva) é sobremaneira dificultada, sem dúvida, pelo emprego de expressões muito abertas pelo legislador, v.g., ordem pública e ordem econômica, cujo conteúdo fortemente emotivo pode propiciar a ruptura dos padrões de legalidade e certeza jurídica, fundamentais na matéria examinada, autorizando os juízes a formular definições puramente persuasivas, que encobrem juízos de valor“.[4]

Para alguns, a ordem pública decorre do abalo social causado pelo crime. Assim, a afetação à ordem pública estaria atrelada à gravidade do ilícito e à comoção social com ele relacionada. Tal concepção padece da falta de objetividade e de segurança, vez que faz depender a liberdade do cidadão da repercussão do crime, fato alheio ao seu comportamento e sem relação com a ordem processual.

Por outro lado, há quem sustente que a ordem pública pode abrigar situações em que a sociedade espera do Judiciário alguma reação diante do suposto delito, e que a inércia afetaria sua credibilidade. Ora, nesse caso, mais adequado ao Estado de Direito que o poder público aja institucionalmente, levando adiante eficientemente o processo, como previsto em lei, e que a reação do Judiciário seja o julgamento definitivo. A aplicação açodada e agoniada de cautelares como resposta estabanada aos apelos populares não prestigia a Justiça, mas banaliza seus instrumentos de coerção.

Outros entendem que lesão à ordem decorre da magnitude do dano causado pelo ato criminoso. Mas não parece plausível que a magnitude do dano justifique a prisão preventiva, vez que a presunção de inocência veda a fundamentação de atos de restrição de direitos sobre conduta carente de análise judicial definitiva. Também não é adequado o argumento de que a magnitude do dano revela o acesso do acusado a meios para subtração à persecução penal ou à decisão judicial Se existem indícios que fundem tal suspeita, a cautelar será admissível pelo requisito de evitar a subtração à aplicação da lei penal, mas não pela violação da ordem pública.

Ordem pública não tem relação com o ato praticado. Garantir a ordem pública é preservar a expectativa da sociedade na produção de um processo penal completo, em ordem, sem turbações. Antecipar a pena não é garantir a ordem, mas legitimar o arbítrio, como já apontou o STF em inúmeros precedentes[5] . No entanto, alguns magistrados ainda interpretam ordem pública de forma abrangente, sob a perspectiva do ato praticado e de seus efeitos, sem atentar que esse ato praticado só gera consequencias jurídicas quando reconhecido por sentença definitiva.

Para evitar a ambigüidade do termo ordem pública, a proposta original de alteração do CPP apresentada pela “Comissão Pellegrini” apresentava o seguinte texto para o art.312: “A prisão preventiva poderá ser decretada quando verificados a existência de crime e indícios suficientes de autoria e ocorrerem fundadas razões de que o indiciado ou acusado venha a criar obstáculos à instrução do processo ou à execução da sentença ou venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira consideradas graves, ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa“.

Tal redação definia de maneira mais consistente a natureza da prisão cautelar, apontando sua viabilidade apenas para a garantia da ordem processual, para assegurar o cumprimento da decisão judicial ou quando presentes indícios de que o acusado viesse a praticar infrações penais específicas. Ficava claro que a expressão ordem pública não significa clamor social ou repercussão midiática do crime, mas perigo de continuidade delitiva. A ordem social teria relações com o futuro e não com o passado.

No entanto, optou o legislador por alterar a redação originalmente apresentada, acatando as críticas formuladas pelo deputado federal Luiz Antonio Fleury Filho, nos seguintes termos: “A parte final do art. 312, além de omitir o tráfico, não substitui convenientemente o que foi suprimido, bastando imaginar que o autor de um crime extremamente grave, desde que não demonstre intenção de reincidir, não mais poderá ser preso, sendo irrelevante a intranqüilidade que sua conduta tenha gerado na comunidade“.[6]

Porém, mesmo mantida a redação atual do Código para o art. 312, a interpretação sistemática desse dispositivo com o disposto na nova redação do art. 282, restringe a abrangência da expressão ordem pública.

Explica-se.

O inc. I do art. 282 estabelece que os requisitos gerais para a imposição de qualquer medida cautelar – incluída a prisão – , serão (i) necessidade para aplicação da lei penal, (ii) necessidade para a investigação ou a instrução criminal e, (iii) nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais.

Tais requisitos – válidos para todas as cautelares – correspondem, grosso modo, àqueles previstos no art.312 – vigentes para a prisão preventiva. A necessidade de aplicação da lei penal e a necessidade para a investigação ou instrução criminal (art.282, I) tem evidente proximidade com a conveniência da instrução criminal e a garantia de aplicação da lei penal (art.312).

Por outro lado, não há aparente paralelo no art.282, I para os outros dois requisitos do art.312: garantia da ordem pública ou garantia da ordem econômica, da mesma forma que não existe expresso correspondente no art.312 para a previsão do art.282, I de imposição de cautelares para evitar a prática de infrações penais.

Uma análise lógica e sistemática, que evite contradições legais, impõe a complementação do requisito evitar infrações penais (requisito de qualquer cautelar – art.282, I) com o requisito garantia a ordem pública ou econômica (requisitos da preventiva – art.312). O primeiro contempla e restringe o âmbito dos segundos. Ordem pública e ordem econômica não podem ser interpretadas de qualquer forma, mas apenas à luz do art. 282, I, que faz referência a todas as cautelares, inclusive à prisão. Trata-se de interpretação autêntica, disposta no mesmo diploma legal, que não autoriza o alargamento de sua incidência.

Assim, o abalo à ordem pública e econômica é exclusivamente constatado pela presença de elementos objetivos indicativos da periculosidade do agente, sua disposição para a continuidade delitiva. Qualquer outra definição de ordem pública ou econômica seria vedada, não pela leitura isolada do art. 312 (cuja redação não é alterada pela proposta), mas justamente em face do disposto no art. 282, I válido para toda e qualquer cautelar – inclusive para a prisão

3.4 Vedações à prisão preventiva

Outra alteração importante diz respeito às restrições à prisão cautelar previstas no novo art.313. Antes, estava sujeito à prisão preventiva o acusado processado por crime doloso (i) punido com reclusão, ou (ii) punido com detenção, quando vadio ou quando houvesse dúvida sobre sua identidade (na ausência de elementos para esclarecê-la), ou (iii) condenado anteriormente por crime doloso, ou (iv) quando o crime envolvesse violência doméstica e familiar contra a mulher.

A nova redação do art.313 reduz o âmbito de abrangência da prisão preventiva, que não mais será aplicada aos processados por crimes punidos com prisão (reclusão ou detenção) com pena máxima inferior ou igual a quatro anos, a não ser nos casos de reincidência em crime doloso, ou se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo  ou pessoa com deficiência. Será ainda possível a prisão cautelar – em qualquer caso – para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, e  quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.

A idéia é evitar a aplicação de cautelar processual mais gravosa que a possível pena, em caso de condenação definitiva. Delitos com pena igual ou inferior a quatro anos são usualmente punidos com penas restritivas de direitos (exceto quando cometidos com violência ou grave ameaça, ou quando o autor for reincidente e estiverem ausentes os requisitos do art. 44, § 3.º, do CP), ou iniciam o cumprimento em regime aberto (exceto nos casos de reincidência: CP, art. 33, § 2.º, c). Logo, não há sentido em determinar o recolhimento cautelar fechado durante o processo quando o réu é primário e a pena final que se quer assegurar é menos aflitiva que o próprio meio para sua garantia. Nada impede, no entanto, que outra cautelar seja imposta para resguardar a ordem processual.

3.5 Descumprimento das medidas cautelares impostas

Questão que pode surgir é sobre a medida a ser tomada diante do descumprimento das cautelares distintas da prisão. O parágrafo único do art.312 prevê que “a prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares“, hipótese também prevista no art.282, §4º. Assim, descumpridas as cautelares diferentes da prisão – como a proibição para freqüentar determinados lugares – é possível a decretação da prisão.

No entanto, não fica claro o que ocorrerá se o agente que descumpre as cautelares é processado por um crime com pena igual ou menor que quatro anos, nos quais não cabe a prisão preventiva por força do art. 313. A hipótese de prisão pelo descumprimento da cautelar prevista nos arts. 312, par. un. e 282, §4º legitimam a decretação de medida, ou a vedação da prisão nesses casos impede a segregação preventiva? Em análise inicial, nos parece que a vedação à prisão preventiva do art.313 impede a aplicação dessa cautelar mesmo diante do descumprimento reiterado de outras medidas, porque a controvérsia legal se resolve em prol da liberdade. Ademais, quisesse o legislador permitir a prisão nesses casos, o faria expressamente, como o faz o projeto de alteração completa do CPP que tramita no Congresso Nacional (PLS 156/09), dispondo que “não incidem as vedações” de prisão cautelar “na hipótese de descumprimento injustificado de outras medidas cautelares pessoais”[7]. A inexistência dessa ressalva na Lei aprovada aponta para a impossibilidade de determinar a prisão preventiva nos casos previstos no art.313, mesmo que o réu descumpra as demais cautelares, sem prejuízo das sanções autônomas impostas à desobediência à ordem judicial.

4.      Outras cautelares pessoais

As outras cautelares previstas no Código são a prisão domiciliar (Capitulo IV, arts.317 e 318) e cautelares distintas da prisão (Capitulo V, art.319 e ss.). As medidas propostas não foram elencadas de forma graduada, ou em ordem de proporcionalidade. A opção por determinada restrição, no caso concreto, dependerá da apreciação judicial de sua necessidade, da proporcionalidade da restrição, e será sempre motivada, nos termos do art. 282 do CPP.

Dentre as novidades nas cautelares, deve ser destacara a reabilitação da fiança, que passa a ser cautelar autônoma e exigível mesmo na ausência dos requisitos para a prisão preventiva, superando-se as dificuldades de interpretação advindas do antigo parágrafo único do art.310. Também merece atenção o monitoramento eletrônico, que deve ser aplicado sempre em conjunto com outra cautelar, vez que o simples controle dos movimentos do réu não tem utilidade alguma se desacompanhado de outra restrição cumulativa, como, por exemplo, a proibição de freqüentar determinados lugares ou a prisão domiciliar.

 

4.1 Cautelares distintas da prisão e cabimento de  habeas corpus

Sem duvida será objeto de discussão o cabimento de habeas corpus para questionar a decretação das cautelates distintas da prisão, vez que o remédio se destina a salvaguardar a liberdade de locomoção. Uma vez que o descumprimento das cautelares enseja sua substituição pela prisão preventiva (CPP art.282, §4º), é possivel o manejo do habeas corpus para questionar sua determinação – em qualquer cautelar – mesmo naquelas que não afetam diretamente a liberdade de locomoção. Da mesma forma que é viável o uso do habeas corpus para questionar penas restritivas de direitos, mesmo a prestação pecuniária[8], que não tem imediato impacto na liberdade de locomoção, deve-se admitir o uso do remédio para questionar as cautelares distintas da prisão, diante da possibilidade de conversão em privação de liberdade pelo descumprimento da medida. As únicas hipóteses nas quais parece inviável o habeas corpus são aquelas decorrentes do art.313, pois aqui não existe a hipótese de conversão em privação de liberdade, mesmo diante do descumprimento das cautelares aplicadas.

4.2 Cautelares e detração

Por fim, há um ponto que exige reflexão: a ausência de previsão da detração diante da aplicação de medidas cautelares distintas da prisão. O Código Penal dispõe, no art.42, que será computado, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro – a detração. Se o réu aguardou preso preventivamente o andar do processo, é natural que esse tempo seja descontado da pena final, ainda que a qualidade e natureza das prisões cautelar e definitiva seja distinta. A supressão do direito de locomoção para salvaguardar o processo será compensado na pena final.

Ocorre que não há previsão legal da detração nos processos em que a cautelar aplicada é distinta da prisão. Para os casos em que o réu for submetido, por exemplo, à prisão domiciliar ou monitoramento eletrônico durante a instrução, a lei não prevê desconto na pena final, o que parece injusto. Se a detração da prisão tem por fundamento o principio da equidade e a vedação ao bis in idem[9], deve o instituto ser estendido a qualquer hipótese de intervenção do Estado em direitos do cidadão, seja a liberdade de locomoção, seja outro qualquer.

O projeto de alteração do Código de Processo Penal (PLS 156), atualmente em discussão no Congresso Nacional, prevê que o tempo de recolhimento domiciliar será computado no cumprimento da pena privativa de liberdade, na hipótese de fixação inicial do regime aberto na sentença (art.607) e que substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nesta será computado o tempo de duração das medidas cautelares previstas pela proposta (parágrafo único).

Da mesma forma, o Código Penal português prevê o desconto total do tempo de pena de prisão caso o réu tenha sofrido, no curso do processo, detenção, prisão preventiva, ou obrigação de permanência na habitação (art.80º, 1, grifos nossos)[10]. Também o Código Penal espanhol estabelece que se abonarán, en su totalidad, para el cumplimiento de la pena impuesta, las privaciones de derechos acordadas cautelarmente (seccion 6ª, art.58, 2) e que cuando las medidas cautelares sufridas y la pena impuesta sean de distinta naturaleza, el Juez o Tribunal ordenará que se tenga por ejecutada la pena impuesta en aquella parte que estime compensada (art.59, sem grifos)[11].

Enfim, os textos citados revelam a adequação da previsão da detração para cautelares distintas da prisão, a sugerir a revisão pontual do Código Penal para a adequação da detração à essa nova realidade legislativa.

No entanto, a ausência de menção à detração para cautelares distintas da prisão no ordenamento não impede sua aplicação pelo juiz, que por analogia pode beneficiar o réu com uma interpretação amplie a abrangência do instituto para além da prisão. Nos parece possível, por exemplo, descontar o tempo passado em prisão domiciliar da eventual pena de prisão definitiva em regime aberto, ou o período processual no qual o réu foi proibido de freqüentar determinados lugares da pena restritiva da mesma natureza, se essa for a condenação. Caso a cautelar e a pena tenham naturezas distintas – como na hipótese da cautelar de prisão domiciliar e a pena de prisão em regime fechado – o tempo descontado não poderá ser o mesmo, mas é possível construir pela jurisprudência uma formula que permita deduzir proporcionalmente – com base na razoabilidade – algo da sanção para detrair a cautelar aplicada.

5.      Conclusão

A par de criticas pontuais, a nova lei é bem vinda. Como qualquer novo ato, ainda será debatida e revolvida pelos operadores do direito e pela academia sob todas as perspectivas. No entanto, sua aprovação e sanção integral demonstra como a articulação entre Poderes e a racionalidade podem produzir normas que contribuam para um processo penal mais eficaz e civilizado, que contribua para a segurança pública e, ao mesmo tempo, respeite a dignidade humana e os princípios constitucionais dela decorrentes.

Importa destacar, apenas, que a consolidação de uma cultura de substituição das prisões processuais não depende apenas da mudança do texto legal. As alterações legislativas são importantes, representam um marco fundamental, mas sobre elas se faz necessária a reformulação de velhos valores e do comodismo das tradições cristalizadas. O desenvolvimento de uma nova política criminal processual depende da coragem de magistrados, promotores, advogados, defensores, enfim, de todos os operadores do direito, para reconhecer e aplicar medidas alternativas, que fujam do terrível cotidiano das prisões cautelares, desta monotemática solução de preservação da ordem processual, e apontem para a valorização da dignidade, afetando o menos possível o cidadão sobre o qual não paira o peso da condenação criminal transitada em julgado.

 


[1] Sobre o tema, ensina Gomes Filho: “Disso resulta, num considerável número de situações, um risco para a própria obtenção e efetividade do provimento a ser alcançado; este seria, como lembrou Calamandrei, um remédio longamente elaborado para um doente já morto (A motivação das decisões penais, p. 218.

[2] LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal allemão. Tomo I. Trad. Jose Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: Briguiet, 1899, p.113

[3] Dados de dezembro de 2009, disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), no Sistema Nacional de Informação Penitenciária (www.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.hhtml)

[4] Antonio Magalhães Gomes Filho, A motivação… cit., p. 225.

[5] Por todos.  HC 92.737 e HC 91.025

[6] Voto em separado apresentado à CCJ na Câmara dos Deputados em 2002, disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=26558.

[7] Art. 557. Não cabe prisão preventiva: I – nos crimes culposos; II – nos crimes dolosos cujo limite máximo  da pena privativa de liberdade cominada seja igual ou inferior a 3 (três) anos, exceto se cometidos mediante violência ou grave ameaça à pessoa; 104 III – se o agente estiver acometido de doença gravíssima, de tal modo que o seu estado de saúde seja incompatível com a prisão preventiva ou exija tratamento permanente em local diverso.  (…)

§ 2º Não incidem as vedações  previstas nos incisos I e II do  caput deste artigo na

hipótese: I – de descumprimento injustificado de outras medidas cautelares pessoais, sem prejuízo

da verificação dos demais pressupostos autorizadores da prisão preventiva; II – em que a prisão preventiva é imposta como garantia da aplicação penal, nos termos do caput do art. 150.

[8] O STF entendeu cabível habeas corpus para questionar pena de prestação pecuniária devida à possibilidade de sua conversão em prisão pelo não cumprimento. HC 86.619/SC, Rel. Min. Sepulveda Pertence, j.27.09.05. Em sentido contrário, defendendo a restrição do habeas corpus apenas para cautelares penais que restrinjam diretamente a liberdade de locomoção,, OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Atualização do Processo penal. Separata juntada ais exemplares da 14ª edição dos Comentários ao Código de Processo Penal. Belo Horizonte, Lumen, 2011, p.07

[9] FRANCO, Alberto Silva, BELLOQUE, Juliana. Comentários aos arts.41 a 60 da obra Codigo Penal e sua interpretação, coord. FRANCO, Alberto Silva e STOCO, Rui, 8ª Ed.. São Paulo: RT, 2007, p.277.

[10] Disponivel em http://www.juareztavares.com/textos/codigoportugues.pdf acessado em 12.05.2011

[11] Disponivel em  http://www.juareztavares.com/textos/codigoespanhol.pdf acessado em 12.05.2011.


 BIBLIOGRAFIA

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Pierpaolo Cruz Bottini é Advogado, professor-doutor de direito penal da USP, coordenador regional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, membro da diretoria da Associaçao Internacional de Direito Penal – Seção Brasil. Foi Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.

 


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