A possível criação da Contribuição Social para a Saúde (CSS) e sua inconstitucionalidade

1. Introdução

A contribuição provisória sobre movimentação financeira (CPMF) restou extinta, em 31.12.2007, devido ao forte movimento social e político que impediu o Congresso de votar favoravelmente à renovação de sua norma de competência legislativa tributária. Mas, desde então, o governo federal articula o seu retorno.

Ou seja, a volta da tributação sobre a movimentação financeira no Brasil nos parece ser uma questão de tempo. Ela dependerá apenas das negociações políticas no Congresso, já que é cogitada sempre sob a bandeira da necessidade de cobrir os gastos com a saúde pública, argumento que goza de forte apelo social. Está aí uma justificativa simplesmente inesgotável para o governo, já que gastos com saúde crescem a perder de vista. Lembre-se que mesmo durante o período de vigência da CPMF a situação calamitosa da saúde pública não foi resolvida, apesar da vultosa arrecadação que a cobrança gerava. O problema é que a discussão sobre a má gestão dos recursos arrecadados para a saúde nunca ganha tanto destaque quanto a necessidade de arrecadar.

Já existem propostas concretas para o retorno da tributação sobre a movimentação financeira e uma delas está em trâmite no Congresso Nacional: a proposta constante do Projeto de Lei Complementar n.º 306-B/2008, parcialmente aprovado na Câmara dos Deputados. O texto ainda aguarda trâmite final na Casa, e acaso aprovado, ainda seguirá para o Senado para discussão.

O projeto, além de regulamentar a Emenda Constitucional n.º 29/2000, que vincula parte dos orçamentos dos entes políticos (União, Estados, DF e Municípios) aos gastos com saúde pública, assegurando valores mínimos de investimento no setor, pretende reinstituir a tributação sobre a movimentação financeira sob o nome de contribuição social para a saúde (CSS), com alíquota de 0,10% para fazer frente ao aumento dos gastos com saúde pública, exigidos por força da Emenda n.º 29/2000.

Lembramos que a EC n.º 29/2000 inseriu os §§ 2º e 3º no art. 198 da Constituição e até hoje aguarda regulamentação por meio de lei complementar. O projeto de regulamentação dos gastos mínimos com saúde pública teve origem no Senado, por onde tramitou como Projeto de Lei do Senado n.º 121/2007, e não continha alusão à criação de uma contribuição para a saúde, pois na época a CPMF ainda estava em vigor, assegurando recursos para a saúde pública, para a previdência e para a assistência social.[1]

Com a extinção da CPMF em 31.12.2007 devido à ausência de prorrogação de sua norma de competência constitucional, o governo conseguiu estimular na Câmara dos Deputados uma modificação do PLC n.º 306-B/2008, para inserir na lei complementar que regulamentará a EC n.º 29/2000 também a instituição da contribuição social para a saúde. O projeto já foi aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação e pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, e será levado à apreciação final na Casa, antes de seguir ao Senado para votação. A renovação na composição da Câmara, resultante das últimas eleições em 2010, poderá trazer novos rumos para a discussão.

2. Análise sobre a constitucionalidade da instituição da CSS em face dos limites à instituição de contribuições sociais residuais (art. 195, §4º, da CF)

Não vamos aqui adentrar no debate sobre a necessidade ou não da recriação da CPMF sob o formato de contribuição social sobre a saúde. Nosso interesse aqui é analisar juridicamente o projeto da instituição da CSS, para ver de sua compatibilidade com a Constituição brasileira.

A CSS será uma contribuição social residual, já que não possui sua hipótese de incidência/base de cálculo indicada no texto do art. 195 da Constituição, e, por tal motivo, como contribuição residual está sujeita às limitações do §4º do art. 195. Esse dispositivo autoriza a União Federal a instituir contribuições para a seguridade social residuais, nos seguintes termos, ipsis litteris: “Art. 195. (…) §4º A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I.”. Qual é o significado ou conteúdo dessa norma de competência legislativa tributária?

Observe-se que o §4o do art. 195 da Constituição permite, textualmente, que “a lei poderá instituir outras fontes (…)” para a seguridade social, e condiciona a criação dessas outras fontes (leia-se aqui “outras contribuições”) à obediência da técnica de tributação residual aplicável aos impostos pelo art. 154, I, da Constituição. Essa técnica impõe limites à instituição de novos impostos pela União, além dos já previstos no art. 153.[2] E por força do §4º do art. 195, essa técnica para instituição de impostos residuais da União deve ser aplicada às contribuições residuais de seguridade social, com os ajustes necessários. Vejamos o teor da regra do art. 154, I:

“Art. 154. A União poderá instituir: I – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos [impostos] discriminados nesta Constituição;” (explicitamos entre colchetes).

Tal regra está a exigir que a União Federal, quando vier a instituir novos impostos afora os já previstos para sua competência no art. 153, o faça por meio de lei complementar. Além disso, a regra exige que a União estruture o novo imposto com incidência não-cumulativa, ou seja, permitindo o abatimento do valor do imposto incidente em etapas anteriores de circulação da matéria tributada, caso sua incidência se dê sobre a circulação de riqueza. E, por fim, a regra também exige que o novo imposto da União não tenha base de cálculo ou fato gerador próprios daqueles já previstos para impostos na Constituição, sejam os previstos para a União, dos Estados, DF ou Municípios (ou seja, o novo imposto deve ter fato gerador e base de cálculo distintos daqueles previstos nos arts. 153, 155 e 156).

Conforme a jurisprudência do STF, a remissão feita pelo §4º do art. 195 aos limites da técnica residual aplicável aos impostos no art. 154, I, deve ser compreendida nos seguintes termos: para a instituição de contribuições de seguridade social residuais pela União Federal, exige-se:

i) seja editada lei complementar;

ii) seja instituída a contribuição de forma não-cumulativa, se for o caso, ou seja, caso a hipótese de incidência/fato gerador da contribuição grave a circulação de riqueza (mercadorias, valores, etc.) ou seu resultado imediato (o que pode implicar em cumulatividade de incidências ao longo de uma cadeia de circulação de riqueza tributável, na qual naturalmente ocorrem sucessivas operações ou resultados de operações)[3], então a nova contribuição deverá ser não-cumulativa, permitindo o abatimento/compensação do valor da contribuição incidente/cobrada em etapas anteriores da circulação econômica;

iii) que a nova contribuição tenha fato gerador ou base de cálculo inéditos em relação a outras contribuições de seguridade social previstas na CF, podendo ter o mesmo fato gerador ou base de cálculo de impostos já previstos na Constituição (observe-se inclusive que a limitação do §2º do art. 145 veda que taxas tenham base de cálculo própria de impostos, e igual vedação não existe para contribuições de seguridade, o que libera, na visão do STF, essas contribuições para que tenham bases de cálculo próprias de impostos, como já ocorre, aliás, com as contribuições de seguridade, discriminadas no arts. 195 e 239 da CF).[4]

Vamos analisar melhor a jurisprudência do STF em torno do §4º do art. 195 da Constituição, dividindo nossa pesquisa aqui em três tópicos, conforme o limite do qual estivermos tratando: i) exigência de lei complementar; ii) não-cumulatividade da incidência; iii) ineditismo de fato gerador ou base de cálculo. Nosso objetivo final é demonstrar que o projeto de instituição da CSS, por sua cumulatividade, fere a vedação contida no §4º do art. 195 da Constituição, aplicável às contribuições residuais, e, portanto, a nova contribuição nascerá inconstitucional.

2.1. O §4º do art. 195 da CF e a exigência de lei complementar

Note-se que o início da redação do §4º do art. 195 da Constituição afirma que a “lei poderá instituir” contribuições residuais, e não a qualifica como lei complementar, o que poderia nos levar a entender que basta lei ordinária para instituir uma contribuição residual. A exigência de lei complementar é encontrada mediante a interpretação da remissão que o §4º do art. 195 faz à observância da técnica de tributação residual dos impostos contida no art. 154, I, dispositivo esse que exige expressamente lei complementar. Conclui-se, assim, que se para impostos residuais se exige lei complementar, para contribuições residuais de seguridade social também se deve exigir.

Mas a redação do §4º do art. 195 da Constituição já levou um ministro do STF, no passado, a entender que a lei ali exigida seria a lei ordinária, dispensando-se lei complementar para instituição de novas contribuições para a seguridade social.[5] Tal posição foi isolada. A jurisprudência do STF é pacífica no sentido de exigir lei complementar para a instituição de contribuições residuais para a seguridade social, com base na interpretação do §4º do art. 195 c/c com o inciso I do art. 154.[6]

Verificando o projeto de instituição da CSS, vemos que se trata de projeto de lei complementar, o que atende, nesse tópico, ao exigido pela norma de competência residual expressa no §4º do art. 195 da Constituição.

2.2. O §4º do art. 195 da CF e a não-cumulatividade

No julgamento do RE n.º 228.321-0/RS, o Supremo Tribunal Federal analisou a  aplicabilidade, às contribuições de seguridade social, de apenas duas das três limitações impostas ao exercício da competência residual pelo art. 154, I, da Constituição. Nesse julgamento, o STF, por maioria de votos, decidiu que a instituição de novas contribuições de seguridade social, com base na competência residual da União fixada no §4º do art. 195 da CF, só pode ocorrer: i) com a edição de lei complementar; e ii) atendendo à exigência de que o fato gerador e a base de cálculo da nova contribuição sejam inéditos em relação aos fatos geradores e às bases de cálculo das contribuições de seguridade social já previstas pela Constituição (especificamente nos arts. 195 e 239 da Carta Magna).

Com base nessas premissas, o STF julgou válida a LC n.º 84/1996, que instituiu uma contribuição de seguridade social previdenciária, incidente sobre a remuneração paga pelas empresas aos empresários e autônomos que lhe prestassem serviços. Para os contribuintes que contestavam a instituição da nova contribuição, ela pretensamente tinha base de cálculo própria do imposto sobre a renda sob a ótica dos empresários (montante da remuneração recebida) e própria do imposto sobre serviços sob a ótica dos prestadores de serviços autônomos (montante da sua remuneração pelos serviços). Por tal motivo, seria inconstitucional, por violar a regra de não identidade de base de cálculo, contida no §4º do art. 195 da CF.

Não nos convencemos da força desse argumento, pois entendemos que a contribuição da LC n.º 84/1996 não tinha base de cálculo própria do IR nem do ISS, pois embora matematicamente sua base de cálculo fosse a mesma usada para o IR e o ISS a ser cobrado na outra ponta da relação jurídica (empresário e autônomo), conceitualmente era distinta, e isso era o que importava neste caso. Pois para a empresa (sujeito passivo da contribuição), a base de cálculo era o montante da remuneração paga aos empresários e autônomos e não o montante recebido. A base de cálculo estava em uma despesa e não em uma renda.

De qualquer forma, o STF, embora tenha identificado uma semelhança entre a base de cálculo da contribuição da LC n.º 84/1996 e a base de cálculo do IRPF e do ISS, entendeu que tal semelhança não seria vedada pela regra do §4º do art. 195 da CF. Ou seja, a contribuição residual poderia ter base de cálculo própria de impostos, bastando que não tivesse identidade com a base de cálculo de contribuições de seguridade social já previstas.

Nesse julgamento do RE n.º 228.321-0/RS não foi analisada pelo STF a aplicabilidade ou não, às contribuições de seguridade social residuais, da outra limitação que cerca a instituição de impostos residuais conforme art. 154, I, da CF, qual seja: a exigência de não-cumulatividade. Afinal, a não-cumulatividade é exigível de novas contribuições de seguridade social a serem criadas com base na competência residual da União posta no §4º do art. 195, como é o caso da contribuição CSS? Ou é uma limitação exigível apenas dos impostos residuais a serem criados com base no art. 154, I, da Constituição?

O STF respondeu a essa questão posteriormente ao julgamento do RE n.º 228.321-0/RS, quando sua Primeira Turma julgou o RE n.º 258.470-3/RS, ocasião na qual os ministros se pronunciaram favoravelmente à exigência da não-cumulatividade para novas contribuições de seguridade social, instituídas com base na competência residual prevista no §4º do art. 195. Nesse julgamento ficou também ressaltado que a exigência da não-cumulatividade só existe no caso da contribuição a ser instituída ser passível de gerar cumulatividade de incidências ao longo de uma cadeia de circulação econômica.[7] Portanto, se a contribuição a ser instituída com base no §4º do art. 195 não tiver hipótese de incidência que possa gerar cumulação de incidências ao longo de uma cadeia de circulação econômica, não há como sequer se cogitar de exigir mecanismo não-cumulativo, pois a contribuição, por sua própria natureza, não será cumulativa.[8]

Em relação à pergunta que fizemos linhas atrás, também para nós, a resposta é inquestionavelmente positiva: sim, as contribuições de seguridade social criadas com base no §4º do art. 195, como será o caso da CSS, devem obediência à não-cumulatividade, a não ser que por sua própria natureza, a nova contribuição não seja cumulativa. Ocorre que a contribuição social para a saúde é, pela natureza de seu fato gerador, cumulativa, e, portanto, fere o §4º do art. 195. Portanto, a nova contribuição CSS, acaso aprovada no Congresso, nascerá inconstitucional em face de sua evidente cumulatividade, que dispensa demonstração, já que herdada da estrutura da antiga CPMF, tributo de cumulatividade reconhecida pelo próprio STF, quando analisou as emendas que criaram e prorrogaram sucessivamente a contribuição ao longo de mais de uma década.

Melhor que a CSS seja votada no bojo de uma proposta de emenda constitucional, que poderá afastar as limitações do §4º do art. 195. A propósito, foi assim que a extinta CPMF veio ao mundo jurídico em 1996, vencendo as limitações da competência residual da União para instituição de contribuições residuais de seguridade social, já que a própria EC n.º 12/1996 afastou expressamente a exigência de lei complementar, de não-cumulatividade e de ineditismo para a contribuição CPMF.

Portanto, a proposta de instituir a CSS em projeto de lei complementar, como uma contribuição residual, presa aos limites do §4º do art. 195, é um projeto de tributo natimorto em virtude da desobediência ao cânone da não-cumulatividade.

2.3. O §4º do art. 195 da CF e o ineditismo do fato gerador e da base de cálculo em relação a contribuições já previstas na CF

Como já referido, o STF se dedicou a uma análise mais aprofundada do teor do §4º do art. 195 da Constituição por ocasião do julgamento sobre a constitucionalidade da LC n.º 84/1996, que instituiu contribuição previdenciária patronal, de caráter residual para a seguridade social, incidente sobre a remuneração paga pelas empresas aos empresários (administradores) e trabalhadores autônomos que lhes prestassem serviços.

O governo federal entendeu necessária a edição de lei complementar para a instituição dessa contribuição residual, pois na época o STF havia reconhecido que o art. 195, I, da Constituição não previa a contribuição, uma vez que a incidência da contribuição previdenciária patronal era restrita à “folha de salários” (remunerações pagas aos empregados), não abrangendo os valores pagos pelas empresas aos seus administradores (empresários) ou trabalhadores autônomos que lhes prestassem serviços. Assim sendo, somente por meio de reforma do art. 195, I, ou por meio de lei complementar (§4º do art. 195) a incidência poderia ser autorizada. Então, primeiro foi editada a LC n.º 84/1996, baseada na competência residual da União. E tempo depois, foi editada a EC n.º 20/1998, ampliando a norma de competência legislativa tributária do art. 195, I, o que passou a autorizar a instituição da contribuição por simples lei ordinária.[9]

Ainda quando da vigência da LC n.º 84/1996, o STF, analisando a constitucionalidade da contribuição instituída por ela, no julgamento plenário do RE n.º 228.321-0/RS decidiu, por maioria de votos, que o §4º do art. 195 da Constituição autorizava a União instituir contribuições residuais para a seguridade social, desde que fosse por lei complementar e que não houvesse identidade entre o fato gerador ou a base de cálculo da nova contribuição em relação aos fatos geradores ou bases de cálculo próprios das contribuições de seguridade social já previstas pela Constituição (vide arts. 195 e 239). Consequentemente, o Tribunal aceitou que a nova contribuição pudesse ter fato gerador ou base de cálculo próprias de impostos já previstos na CF, contrariando a tese levantada por muitos contribuintes à época, como já comentamos no item anterior.

Note-se que o STF se convenceu de que a contribuição residual instituída pela LC n.º 84/1996 tinha base de cálculo própria dos impostos sobre a renda (no caso da remuneração paga aos empresários) e do imposto sobre serviços (no caso da remuneração paga aos autônomos), e mesmo assim foi entendida constitucional, pois essa identidade não era vedada pelo §4º do art. 195 na visão da maioria dos ministros votantes na ocasião. O que era vedado à nova contribuição, baseada no §4º do art. 195, era ter fato gerador ou base de cálculo própria de contribuições de seguridade social já previstas na Constituição, e isso não ocorria com a contribuição instituída pela LC n.º 84/1996.

Portanto, na visão do STF exarada no RE n.º 228.321-0/RS, a técnica da competência legislativa tributária residual contida no art. 154, I, da CF é a mesma para impostos e para contribuições de seguridade social: para instituição de novo imposto ou nova contribuição de seguridade social, é preciso que seu fato gerador e sua base de cálculo sejam inéditos em relação aos fatos geradores e bases de cálculo já previstos na Constituição para a mesma espécie tributária (imposto ou contribuição de seguridade social).

Isso evita que venham a ser criados pela legislação infraconstitucional da União Federal novos impostos sobre os mesmos fatos geradores já previstos na Constituição, ou que sejam instituídas novas contribuições de seguridade social sobre os mesmos fatos geradores já previstos para contribuições dessa espécie. Mas não impede que uma contribuição de seguridade social criada com base no §4º do art. 195 da Constituição tenha fato gerador próprio de impostos já previstos na Constituição.[10]

Ou seja, mesmo em relação às competências legislativas tributárias residuais (exclusivas da União, vide arts. 154, I e 195, §4º) a proteção contra o bis in idem e a bitributação não é absoluta, conforme admitido pela Suprema Corte, como vimos acima.[11]

Analisando o projeto de lei complementar para a instituição da CSS, vemos que se trata de contribuição de seguridade social cujo fato gerador e base de cálculo (movimentação financeira) poderia ser assemelhado ou mesmo considerado como próprio de um imposto da União Federal: o imposto sobre operações financeiras (IOF) previsto no art. 153, V, da Constituição.

Porém, como já afirmado pelo STF, a norma de competência residual contida no §4º do art. 195 remete-se ao art. 154, I, da Constituição apenas para exigir que a nova contribuição de seguridade social não tenha fato gerador ou base de cálculo próprios dos fatos geradores e bases de cálculo das contribuições de seguridade social já previstas na Constituição. Sob a ótica da jurisprudência do STF, nada impede que tenha fato gerador ou base de cálculo próprios de impostos. Nesse quesito, portanto, é constitucional o projeto de lei complementar que pretende a instituição da CSS.

3. Conclusão: inconstitucionalidade do projeto de instituição da CSS

Como vimos, é possível concluir que o projeto de instituição da CSS é inconstitucional, porque, apesar da CSS ser instituída por lei complementar e não possuir fato gerador ou base de cálculo próprios das contribuições de seguridade social já previstas na Constituição, como exige o §4º do art. 195 da Constituição na interpretação do STF, a nova contribuição será cumulativa, ferindo a exigência de não-cumulatividade prevista também no §4º do art. 195 da Constituição.

 

Notas:

[1] Os recursos arrecadados com a alíquota da CPMF, à época fixada em 0,38%, eram assim divididos: 0,20% destinados à saúde; 0,10% à previdência e 0,08% destinados à assistência social (vide art. 84 do ADCT da CF/1988, com a redação das ECs n.º 37/2002 e 42/2003).

[2] O art. 153 da CF discrimina os impostos de competência da União Federal, apontando, de forma aproximada, quais podem ser seus fatos geradores e suas bases de cálculo.

[3] Como ocorre nas sucessivas operações de venda de mercadorias ou em sucessivas operações financeiras com determinado valor, etc.

[4] Veja-se o dispositivo: “Art. 145. (…) §2º As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.”

[5] Esse foi o entendimento do Ministro do STF Sydney Sanches (aposentado) exarado em seu voto no julgamento plenário da ADIN-MC n.º 1.497-8/DF (Rel. Ministro Marco Aurélio, Rel. para acórdão o Ministro Carlos Velloso, julgado por maioria em 09.10.1996, DJU em 13.12.2002). Observamos, porém, que o conteúdo do §4o do art. 195 da Constituição não foi o foco desse julgamento do STF, que se concentrou apenas em determinar a constitucionalidade da Emenda n.º 12/1996 que criou a norma de competência da CPMF (contribuição provisória sobre movimentação financeira).

[6] Vide RE n.º 166.772-9/RS, RE n.º 177.296-4/RS, ADI n.º 1.102-2/DF, RE n.º 228.321-0/RS, ADIN-MC n.º 1.497-8/DF, dentre inúmeros outros.

[7] Sobre a não-cumulatividade tributária, dentre outros trabalhos publicados, veja-se: MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. São Paulo: Noeses, 2010.

[8] Foi o que ocorreu no caso da LC n.º 84/1996, quando instituiu a contribuição previdenciária residual incidente sobre a remuneração paga aos autônomos e empresários: a contribuição, por sua natureza, não implicava cumulação de incidências ao longo de cadeia de circulação econômica, pois seu fato gerador era dissociado de uma cadeia de circulação econômica (não gravava circulação de bens ou mercadorias, como o fazem, por exemplo, o IPI e o ICMS). Tal fato foi explicado pela Primeira Turma do STF no julgamento do RE n.º 258.470-3/RS, ipsis litteris: “Contribuição social. Constitucionalidade do artigo 1º, I, da Lei Complementar nº 84/96. – O Plenário desta Corte, ao julgar o RE 228.321, deu, por maioria de votos, pela constitucionalidade da contribuição social, a cargo das empresas e pessoas jurídicas, inclusive cooperativas, incidente sobre a remuneração ou retribuição pagas ou creditadas aos segurados empresários, trabalhadores autônomos, avulsos e demais pessoas físicas, objeto do artigo 1º, I, da Lei Complementar nº 84/96, por entender que não se aplica às contribuições sociais novas a segunda parte do inciso I do artigo 154 da Carta Magna, ou seja, que elas não devam ter fato gerador ou base de cálculos próprios dos impostos discriminados na Constituição. – Nessa decisão está ínsita a inexistência de violação, pela contribuição social em causa, da exigência da não-cumulatividade, porquanto essa exigência – e é este, aliás, o sentido constitucional da cumulatividade tributária – só pode dizer respeito à técnica de tributação que afasta a cumulatividade em impostos como o ICMS e o IPI – e cumulatividade que, evidentemente, não ocorre em contribuição dessa natureza [a contribuição da LC n.º 84/1996] cujo ciclo de incidência é monofásico -, uma vez que a não-cumulatividade no sentido de sobreposição de incidências tributárias já está prevista, em caráter exaustivo, na parte final do mesmo dispositivo da Carta Magna, que proíbe nova incidência sobre fato gerador ou base de cálculo próprios dos impostos discriminados nesta Constituição. – Dessa orientação não divergiu o acórdão recorrido. Recurso extraordinário não conhecido.” Explicitamos entre colchetes  (STF, 1ª Turma, RE n.º 258.470-3/RS, Relator  Min. MOREIRA ALVES, julgado em 21.03.2000, DJ 12.05.2000).

[9] A EC n.º 20/1998 autorizou expressamente a instituição da contribuição: “Art. 195. (…) contribuições sociais: I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício [caso dos administradores e autônomos];” (explicitamos entre colchetes).

[10] No julgamento do RE n.º 228.321-0/RS no STF, apenas os Ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio entenderam mais ampla a limitação do §4º do art. 195, para impedir que novas contribuições de seguridade social tivessem fato gerador ou base de cálculo próprios de impostos e de contribuições de seguridade social já previstos na Constituição. Eis a posição do Ministro Sepúlveda, ao criticar a posição do Relator do caso, o Ministro Carlos Velloso, ipsis litteris: “(…) a mim me parece que o raciocínio do em. Relator faz abstração de que a vedação de coincidência de fato gerador ou de base de cálculo entre as contribuições enumeradas no art. 195, caput, e as que se viessem a criar, com base no §4º, já resulta de ter esse último por objeto a instituição de outras fontes de custeio da seguridade social, que não as já estabelecidas no contexto do mesmo artigo, o que faria gritantemente ociosa a menção à obediência devida ao art. 154, I, da Constituição.

Entendo, pois, que as novas contribuições sociais – de instituição autorizada no art. 195, §4º, da CF – não podem constituir duplicação substancial não apenas das contribuições enumeradas no caput em relação às quais hão de constituir ‘outras fontes’ de financiamento do sistema -, mas também dos impostos discriminados na Constituição, aí, por força da observância imposta ao art. 154, I, da mesma Carta.” (voto do Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do RE n.º 228.321-0/RS, grifos do original).

[11] Bis in idem é uma expressão que designa a situação de duplicidade (ou mesmo de multiplicidade) de incidência tributária sobre um mesmo fato, quando envolve tributos da competência tributária do mesmo ente político (ex.: União); e “bitributação” designa a mesma situação, porém, aqui envolvendo tributos da competência de dois (ou mais) entes políticos distintos (ex.: Estado e União).

Rodrigo Caramori Petry é Professor, Advogado e Consultor Tributário em Curitiba-PR. Mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR. Membro do IBDT e da ABDT. rcp@rodrigopetry.com.br

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