Ladismara Teixeira

A inobservância do princípio da moralidade nos atos da administração pública: reflexos na sociedade

O cenário atual da Administração Pública brasileira, nos 03 poderes constituídos – Legislativo, Executivo e Judiciário, retrata como nunca antes o descompasso entre os princípios norteadores a que a Administração Pública se sujeita pela CF/88 e a realidade constatada: escândalos que mancham a imagem da Administração Pública nos três poderes constituídos , sem exceção.

Notadamente as manobras de desvios de verbas públicas, apropriação indevida de numerários, facilitação na contratação direta de particulares com a Administração Pública, nepotismo, venda de sentenças e tantas outras condutas contrárias ao interesse público, numa análise de procedimento tem em seu nascedouro a inobservância pelo agente, seja político ou administrativo, do Princípio da Moralidade, e em sua perfectibilização como ato administrativo, a desconsideração dos demais princípios constitucionais, insertos no artigo 37 da CF ou ao longo do texto constitiucional, que devem nortear todo ato emanado da Administração Pública

No contexto histórico, os romanos, sabiamente, já esboçavam aquilo que viria a ser o Princípio da Moralidade, no seguinte ditado: “non omne quod licet honestum est” (nem tudo o que é legal é honesto).

Há de se notar que já por essa antiga citação se podia vislumbrar a dicotomia moralidade/legalidade. Em verdade, no início dos estudos sobre o princípio em tela, entendia-se que o conceito de moralidade advinha do conceito de legalidade, sendo que só modernamente houve a demarcação do alcance de cada qual, culminando, portanto, na expressa referência ao princío da moralidade no artigo 37 da Constituição Federal.

Mas efetivamente, o conceito de moralidade como princípio aplicável à Administração Pública vem da França do século XIX, a partir da ampliação da teoria do desvio do poder, capitaneada pelo jurista francês Maurice Hauriou (Ladiville, Charente 1856 – Toulouse 1929).

No Brasil, as lições de Hauriou foram compiladas pelo eminente doutrinador Hely Lopes Meirelles, que assim definia o Princípio da Moralidade:

“A moralidade administrativa constitui hoje em dia, pressuposto da validade de todo ato da Administração Pública (Const. Rep., art. 37, caput). Não se trata – diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito – da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como “o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da AdministraçãoDesenvolvendo a sua doutrina, explica o mesmo autor que o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. Por considerações de direito e de moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme já proclamavam os romanos – non omne quod licet honestum est. A moral comum, remata Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para a sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve, e a finalidade de sua ação: o bem comum. (Direito Administrativo Brasileiro, 15ª ed., São Paulo, RT,1990,p.79/80).

A priori, importante constar o conceito de princípio jurídico como categoria de norma jurídica dotada, em si, de validade e eficácia, apreciável pelo Poder Judiciário pela via da Ação Popular, conforme se verá adiante.

O Princípio da Moralidade se fez expresso no caput do artigo 37 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional 19/98, ao lado dos demais princípios constitucionais da Administração Pública previstos quando da proclamação da Constituição em 1988, como o da legalidade, impessoalidade, eficiência.

Mas ao longo do texto constitucional de 1988, vários dispositivos já se reportavam ao princípio da Moralidade, haja vista que o objetivo do constituinte de 1988 era o de buscar o Estado Democrático de Direito como na previsão do instituto da ação popular – art. 5.º, LXXIII – contra ato lesivo à moralidade administrativa; na previsão da punição para o ato imoral coadunado pela improbidade- art. 37, § 4.º. Nessa esteira, mais especificamente na esfera do Poder Executivo, o § 9º do art. 14 também preconiza ao detentor de mandato a observância à probidade e à moralidade no exercício de suas funções e ainda o inciso v do artigo 85, que tipifica a improbidade administrativa em crime de responsabilidade.

O ilustre professor e jurista Ives Granda assim leciona sobre o princípio in casu:

“E a fim de punir o Estado e os governantes que causem dano à sociedade e lesão aos cidadãos, estatuiu, em seus parágrafos 5.º e 6.º, a responsabilidade objetiva do Estado e a subjetiva dos governantes, sendo esta imprescritível.

À evidência, não criou a Constituição um princípio novo no direito brasileiro _pois, desde os estudos de Hariou, tal princípio conforma o direito administrativo das nações civilizadas, mas tornou pela primeira vez explícito o que se tinha por implícito no direito pátrio. Por ele, deve o Estado procurar sempre o bem-estar da sociedade, impondo aos governantes e aos servidores públicos a obrigação de serem pessoas de categoria moral superior, que objetivem apenas servir ao povo e não dele servir-se “pro domo sua”. ( Ives Granda )    

No âmbito da Administração Pública, o princípio em tela guarda pertinência com a idéia de moralidade para o alcance do dever da boa administração, dever este reconhecido pelo direito atrelado ao dever de boa-fé objetiva, eis que independe do sujeito, ainda, sem juízo de valor quanto à intenção do ato e também atrelado ao dever de lealdade no cumprimento das funções administrativas e constitui pressuposto de validade dos atos e contratos administrativos.

Notadamente, a moralidade na conduta do agente público guarda vínculo direto com a coisa pública, os interesses da coletividade, orçamento público, supremacia do interesse público, que refletirão diretamente na vida do administrado. Contudo, importante ressaltar que todos aqueles que se relacionem com a Adminitração pública são sujeitos à observância do Princípio da Moralidade e não apenas os agentes públicos. Para elucidar tal assertiva, basta que se tome o exemplo de um certame licittório, que de um lado tem a Administração Pública e de outro os participantes do certame, que têm o dever de observar o Princípio da Moralidade  e boa-fé com a Administração e com os demais participantes do processo licitatório.

Portanto, há muito é pacificada na doutrina e no direito positivado a necessidade de observância do Princípio da Moralidade na prática de todos os atos emanados pela Administração Pública, mas lamentavelmente a realidade política (Executivo e Legislativo) e Judiciária é recheada de exemplos que contrariam a norma principiológica ora debatida.

Para ilustrar a incidência de atos oriundos da Administração Pública que, em seu nascedouro, já desrespeitavam a questão da moralidade e, em sua perfectibilização, feriram outros tantos princípios constitucionais (impessoalidade, transparência), traz-se colacionadas várias matérias veiculadas nos sistemas de comunicação, conforme se vê:

“A corrupção no Brasil, está classificada junto a 163 países na base na percepção de corrupção entre autoridades públicas e políticos , no chamado ÍNDICE DE PERCEPÇÃO DE CORRUPÇÃO. O Brasil caiu oito posições esse ano, comparado ao ano passado e está em 70° lugar no ranking total. E em 14.º entre os países da América (overmundo.com.br 28/11/2006)”.

“Com 12 parentes em seu gabinete, presidente da Assembléia é reeleito no AM .O presidente da Assembléia Legislativa do Amazonas, Belarmino Lins (PMDB), que tem 12 parentes trabalhando em seu gabinete, foi reeleito hoje para o terceiro mandato a frente da Mesa Diretora. Ele disse que só vai demitir os parentes, entre eles a mulher e cinco filhos, se Câmara dos Deputados aprovar a legislação que combate o nepotismo.

Os parentes de Lins ganham salários entre R$ 3.000 e R$ 5.000, além do vale-alimentação de R$ 700. “Até que a Câmara dos Deputados decida sobre nepotismo, eu não posso punir pessoas que me ajudam ao longo da minha vida pública”, afirmou o deputado.

Com a reeleição, Belarmino Lins vai continuar no comando da Assembléia até janeiro de 2011. Dos 24 deputados da Casa, 18 votaram a favor do segundo mandato dele. Um votou em branco e seis se ausentaram por não concordar com uma manobra de Lins (Brasil, Kátia – Agência Folha, em Manaus 9/7/2008)”.

“Um ano depois, exonerados do Senado por nepotismo estão em cargos públicos Supremo Tribunal Federal determinou o fim do nepotismo nos três poderes.

Dois senadores resolveram manter funcionários pagando salário por fora.

Um ano após o Supremo Tribunal Federal (STF) determinar o fim do nepotismo nos três poderes, em 20 de agosto de 2008, alguns servidores exonerados pelo Senado devido à norma estão em outros cargos públicos, até mesmo na própria Casa. Um exemplo da volta dos demitidos é Carlos Eduardo Alves Emerenciano.

Ele ganhou notoriedade no ano passado por ser o primeiro exonerado no Senado devido à súmula. Seu tio e antigo patrão era Garibaldi Alves (PMDB-RN), então presidente da Casa. A demissão de Emerenciano foi anunciada pelo próprio Garibaldi para dar exemplo aos colegas, no dia seguinte à decisão do STF.

Há cerca de um mês, ele retornou ao serviço público. Trabalha como assessor do subprocurador-geral da República (Edílson França.Eduardo Bresciani. 20/8/09)”.

“Venda de sentenças é pior que no velho oeste. A venda de sentenças judiciais no Brasil favorecendo donos de bingos e de máquinas caça-níqueis é pior do que as negociações de decisões de juízes típicas do período da conquista do Oeste dos Estados Unidos, no século 19. (…) Os empresários que enchiam os bolsos de juízes e de políticos em troca de sentenças e de leis favoráveis aos seus interesses tinham também objetivos produtivos. Visavam, com as facilidades obtidas por meio da corrupção, alavancar os seus investimentos em canais, ferrovias, linhas de barcos a vapor, minas, poços de petróleo e indústrias decisivos ao progresso do país. Já os donos de bingos e de máquinas caça-níqueis do Brasil não têm outro objetivo além do seu próprio progresso material, proporcionado pela dissipação de recursos de aposentados, viciados em jogo e desavisados em geral (Carlos Drummond é jornalista. 30 de abril de 2007)”.

“Militares envolvidos com organização criminosa desarticulada serão interrogados. Os seis militares denunciados à Justiça pelo promotor de Justiça Militar, Luiz Augusto de Santana, por envolvimento com uma organização criminosa – desarticulada pela “Operação Nêmesis” – que montou e executou um esquema de fraudes em licitações na Polícia Militar da Bahia, especificamente na concorrência para a aquisição de viaturas, serão qualificados e interrogados pelo Conselho Estadual da Justiça no próximo dia 8 de setembro (Rafael Lima 21/8/2009)”.

“CNJ vai investigar atos secretos em tribunais do País

Extraído de: Estadão –  31 de Julho de 2009

SAO PAULO – O ministro Gilson Dipp, corregedor nacional de Justiça, informou ontem que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vai promover uma varredura nos atos internos de todos os tribunais do País. A decisão foi tomada a partir da divulgação sobre atos reservados no Tribunal de Justiça de Minas. Vamos cobrar todos os tribunais em relação à transparência dos atos?, declarou Dipp. É preciso divulgar todos os atos. Não se pode admitir atos secretos no Judiciário. Em lugar nenhum, é regra na administração pública. E no Judiciário com mais razão porque é o guardião, em tese, de toda a moralidade administrativa? As informações são do jornal O Estado de S. Paulo”.

“Caso de venda de sentenças vai parar em Brasília .O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deverá julgar a sindicância contra o desembargador Rubem Dário Peregrino Cunha, cujo filho, Nizan Cunha, teria sido flagrado em conversa telefônica negociando uma sentença do pai com o ex-prefeito de São Francisco do Conde Antônio Pascoal. A presidente do TJ-BA, Silvia Zarif, declarou, sem informar o nome do desembargador, que os autos da sindicância devem ser enviados ao órgão de controle administrativo e disciplinar do Poder Judiciário, localizado em Brasília.O conselho passa por reformulação de seus membros, e apenas três dos novos 15 conselheiros foram confirmados pelo Senado, que vive uma crise institucional. O que indica que uma decisão a respeito do caso, iniciado em setembro do ano passado, deve demorar(Autor: AE – Agencia Estado Junho 30, 2009)”.

Assim, ante o estarrecedor quadro supracitado (que frise-se, não é taxativo, por óbvio) de crimes praticados por agentes públicos contra a sociedade brasileira, é forçoso reconhecer que o princípio da moralidade, que deveria constar na gênese de qualquer ato praticado pela Administração Pública, é constantemente afrontado, resultando em crimes de prevaricação, prática do clentelismo, nepotismo, lavagem de dinheiro.

Ademais, é forçoso também reconhecer que, assim como no direito consuetudinário, que reflete os usos e costumes de um povo, a moralidade administrativa guarda estreitamento com a moralidade enraizada numa sociedade. Nessa esteira, pode-se concluir que a atividade estatal é o reflexo das crenças e costumes praticadas pela sociedade. 

Ladismara Teixeira é advogada e aluna do Curso de Especialização em Direito Administrativo do Instituto Romeu Felipe Bacellar, em Curitiba/PR

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