20 anos de Constituição Federal e o “Brasil Nunca Mais”

Comemorou-se 20 anos de vigência da Constituição federal (1988), no ultimo dia 5 de outubro, e infelizmente ainda muitos de seus dispositivos não foram efetivados como diretos fundamentais auto-aplicáveis e clausulas pétreas.

Todos os profissionais e operadores do direito (advogados, promotores de Justiça, magistrados entre outros) devem estar cada vez mais atentos e comprometidos com as liberdades públicas, ou seja, trabalhando incessantemente em prol de garantias individuais e coletivas da cidadania, neste estágio de emancipação na vida civil, política e pública.

A cidadania brasileira pode festejar avanços jurídicos conquistados historicamente através de sangrentas batalhas, revoluções e lutas sociais. Todos os seres humanos nascem livres em dignidade, em direitos e obrigações. Todos são iguais ante a lei e perante os órgãos da administração (juízes e Tribunais). Todos possuem direito de peticionar junto aos Poderes Públicos em defesa própria e de terceiros, contra ilegalidades ou abusos.

Estas garantias fundamentais da cidadania que constam em nossa Carta Magna, são também reconhecidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, desde 1948.

De outro lado, devemos dar condolências às vítimas do AI – 5, pelos 40 anos de atentado e de desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e da cidadania brasileira, que durante o governo Costa e Silva o povo brasileiro conheceu o mais cruel Ato Institucional n.º 5 ou simplesmente AI 5, de 13 de dezembro de 1968, documento flagrantemente autoritário que revogou as garantias fundamentais da cidadania, em nome da revolução militar de 31 de março de 1964.

Regime que em nome da liberdade, do respeito à dignidade da pessoa humana, da reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, decretou-se o recesso parlamentar do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, ficando o Poder Executivo autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições e nas Leis Orgânicas dos Municípios, bem como intervir nos Estados e Municípios, sem qualquer limitações previstas na Constituição, suspendendo inclusive os direitos políticos dos cidadãos, onde cassou mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

A suspensão dos direitos políticos com base no AI-5, importou na cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; na suspensão do direito de votar e de ser votado; proibiu atividades ou manifestações de natureza política; ademais de implantar medidas de segurança através de liberdade vigiada e proibição de freqüentar determinados lugares.

Ficaram ainda, durante o famigerado AI-5 suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade em funções públicas, onde o presidente da República mediante decreto, demitiu, removeu, aposentou funcionários e agentes públicos, empregados de autarquias, etc.; demitiu e transferiu para a reserva ou reformou militares ou membros das polícias militares

Decretou-se confisco de bens, suspendeu-se a garantia de habeas corpus, excluindo de qualquer apreciação judicial atos praticados de acordo com o Ato institucional n.º 5.

Tratava-se de verdadeiro Estado de Polícia, de ditadura militar, de regime autoritário, anti-democrático e absolutista, momento dramático e inesquecível da história político-jurídico para os brasileiros.

A Declaração Universal estabelece que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos a vida, a liberdade e a segurança pessoal. E a Constituição federal expressa que a vida, a integridade física, o patrimônio, a honra são bens invioláveis, e que compete ao Estado e é dever de todos a segurança e a ordem pública.

O direito como lei infraconstitucional deve ser sempre aplicado à luz do princípio da hieraquia vertical de validade e soberania das normas. Neste contexto não podemos olvidar os Direitos Humanos expressos em diversos instrumentos internacionais aderidos pelo governo, dentro de seu processo legislativo próprio (art. 59 e segts. da Constituição Federal), bem como segundo a aceitação tácita universal.

Ressalte-se, a legitimidade que ampara o princípio da representação popular, no contexto dos direitos fundamentais constantes no artigo 1.º ao 5.º expressos na Carta Magna e originário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (inc. III art. 1.º CF), e rege-se pelo princípio da prevalência dos Direitos Humanos, nas suas relações internacionais, “ex vi” do in. ii, art. 4.º da Constituição federal, “mutatis mutandis”, também e em especial nas questões internas da cidadania nacional.

Expressa a “lex fundamentalis”. Todas as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais possuem aplicação imediata e não excluem outras decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, via direito público interno e internacional (parágrafo 1.º e 2.º do art. 5.º CF).

A própria “lex fundamentalis” (CF/88) no parágrafo 2.º do artigo 5.º dos direitos e garantias fundamentais, dispõe: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

O artigo 60 § 4.º da Carta Magna estabelece que não poderão ser motivo de propostas para deliberação, nem sequer por emenda constitucional. Não se permite tendência alguma para abolição, das seguintes questões:
I – A que se refere a forma federativa de Estado, onde a República Federativa do Brasil, que se constitui em Estado Democrático de Direito (artigo 1.º, I, II, III, IV, V CF). Não se modificam e não se alteram os princípios da República, os fundamentos e os objetivos, isto é, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político, a prevalência pelos direitos humanos, entre outros (parágrafo único, do art. 1.º, art. 3.º, I, II, III, IV e art. 4.º, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, parágrafo único CF).
II – No que diz respeito ao voto direito, secreto, universal e periódico, ante o sistema democrático de sufrágio universal (art. 14 CF).
III – Sobre a separação dos Poderes, executivo, legislativo e judiciário, posto que todo Poder estatal emana do povo e em seu nome será exercido, sendo todos independentes e harmônicos entre si (art. 2.º CF).
IV – quanto aos direitos e garantias individuais da cidadania (art. 5.º CF)

Note-se.

São os direitos e garantias individuais, coletivas e sociais.

Os direitos sociais (artigo 6.º ao 11), no contexto da individualidade de cada cidadão; a autonomia dos Estados Federados (artigo 25); a autonomia dos Municípios (artigo 29, 30, I, II, III); a organização bicameral do Poder Legislativo (artigo 44); a inviolabilidade dos Deputados e Senadores (artigo 53); as garantias dos Juízes (artigo 95, I, II, III); a permanência institucional do Ministério Público (artigo 127) e de suas garantias (artigo 128, I, a, b, c); as limitações do Poder de Tributar (artigo 150, I, II, III, a, b, IV, V, VI, a, b, c, d, artigo 151); e os princípios da ordem econômica (artigo 170, I a IX, parágrafo único).

Ditos preceitos estão relacionados no artigo 60, parágrafo quarto e incisos I ao IV: a forma federativa de Estado; a separação dos poderes; o voto direto, secreto, universal e periódico e os direitos e garantias individuais. São classificadas como um leque de matérias que representam o cerne da ordem constitucional, furtadas a disponibilidade do poder de revisão. São as chamadas limitações materiais explícitas ao poder de reforma, manifestação do poder constituinte originário, ao elaborar um novo texto, através da possibilidade de exclusão de modo expresso, certas matérias e conteúdos do poder instituído (J. J. CANOTILHO, 1998, p. 942).

Os direitos fundamentais da cidadania se manifestam através das cláusulas pétreas auto-aplicáveis, posto que somente durante o Estado de Defesa ou de Sítio (arts. 136 e 137 CF), mediante declaração expressa por parte do Executivo e autorização do Parlamento, especificando a causa e o tempo da situação de emergência concreta, poderá suprimi-los, daí o conceito correto de cláusula pétrea e de blindagem das garantias individuais processuais no sistema penal democrático.

Ao Judiciário compete aplicar a lei vigente, não possuindo desta maneira a função constitucional legal executiva que autoriza com exclusividade e excepcionalmente a quebrar das garantias fundamentais. A mais alta Corte de Justiça, ao Supremo Tribunal Federal, compete a guarda da Carta Magna e o controle da constitucionalidade das normas.

A Emenda Constitucional n.º 45/2004, definiu a atribuição de processamento dos crimes contra os Direitos Humanos ao Procurador-Geral da República, e a competência de julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça – STJ (art. 109 V-A e § 5.º da EC n.º 45/2004 c.c art. 1.º, inc. III, Lei n.º 10.446/02).

Salientamos que os atentados contra os Direitos Humanos sempre terão repercussão nacional e internacional, por serem considerados “bien commun de l’humanité” e crime de lesa humanidade.

Esta é a real e mais correta interpretação e aplicação da Constituição na práxis policial-forense, na tutela os interesses indisponíveis individuais (art. 127 CF/88), visando a construção de uma sociedade, justa e solidária (art. inc. I, art. 3.º CF/88), para a integralização in totum dos direitos fundamentais, das pessoas que vivem intra ou extra “murus”.

Zelar pelo prestígio da Justiça é dever inerente dos representantes do Ministério Público; desprestígio à administração da Justiça é não dar atenção às garantias fundamentais, violar ou menosprezar os Direitos Humanos (art. 43, inc. II Lei n.º 8.625/93).

Cabe ao Ministério Público proteger e tutelar os Direitos Humanos e fundamentais da cidadania, ante a incumbência constitucional da instituição na proteção do regime democrático e dos direitos indisponíveis. Seus membros são verdadeiros Ombudsman, Promotores e Procuradores dos Direitos Humanos, na qualidade de paladinos da justiça e advogados da sociedade por excelência.

O Ministério Público é a instituição essencial à função jurisdicional do Estado titular exclusivo e dominus litis do ius persequendi estatal (art. 129, inc. I CF), tem atribuições legais para a propositura de ação ex delicto, para assegurar os direitos das vítimas de crime (MAIA NETO, Cândido Furtado, in “O Promotor de Justiça e os Direitos Humanos”; ed. Juruá, Curitiba, 2003).

A luta pelo direito e pela justiça no reconhecimento dos valores humanos como lei máxima natural não permite nenhuma espécie de violação, renúncia, postergação, relativização ou mitigação dos direitos inderrogáveis e indeclináveis da cidadania.

No ano de 2007, foram mais de 400 mil quebras de sigilos telefônicos, nunca visto na história dos abusos do Brasil, e recentemente neste ano de 2008, o próprio presidente do Pretório Excelso ministro Gilmar Mendes e um senador da República foram vítimas deste tipo de crime hediondo e organizado (Rev. Veja agosto/2008).

Vivemos num verdadeiro Estado de Polícia que vem suplantando o Estado Democrático de Direito, onde poucos percebem e têm consciência. O Estado de Polícia restringe direitos e liberdades individuais com imposições de medidas coercitivas e repressivas sem limites nas leis e na Constituição. Somente o Poder Judiciário e o Ministério Público comprometidos podem fazer cessar o império do arbítrio responsabilizando os falsos legalistas e justiceiros de hoje.

Acorda, Brasil! Já se faz tarde, é hora de agir com determinação. Do crepúsculo surgirá à luz; não deixemos que incrédulos continuem incrédulos. A aplicação dos princípios de Justiça são exigências mínimas e universais, compromisso público como dever fundamental em prol da cidadania. Não é lícito, nem correto e muito menos honesto quedarmos inertes e calados frente aos lamentáveis e reais acontecimentos que configuram e instituem o Estado de Polícia ou Estado Nazista da República Federativa do Brasil, nos dizeres do ministro Edson Vidigal, do Superior Tribunal de Justiça (Rev. Isto É, julho/2005).

“O Brasil é um país inconstitucional”, asseverou certa vez o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, dr. Roberto Busato, em junho/2004 -, pelos desrespeitos às garantidas fundamentais individuais do cidadão (ocasião do discurso de posse do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim).

Roguemos então à Themis, Deusa da Justiça, em respeito a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), pela efetivação da Carta da Republica (1988), e por um Brasil Nunca Mais do AI-5 (1968).

Cândido Furtado Maia Neto é professor pesquisador e de pós-graduação (especialização e mestrado). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Conpedi). Pós doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais e Criminológicas.
E-mail: candidomaia@uol.com.br
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