Quem determina morte é autor mediato, co-autor ou indutor?

Ocorre autoria mediata (ou autoria por determinação), em direito penal, quando o autor (o que comanda o fato) domina a vontade alheia e, desse modo, utiliza outra pessoa que atua como instrumento da realização do crime. Exemplo: o médico quer matar seu inimigo que está hospitalizado; a droga letal que ele indica é ministrada em injeção realizada pela enfermeira, que é utilizada como instrumento.

O médico induz a enfermeira a erro, por isso que essa situação também á chamada de autoria por determinação.

Uma situação peculiar de autoria mediata ocorre quando o agente imediato, que serve de instrumento, atua dolosamente, mas dentro de uma estrutura de poder (organização criminosa, pública ou privada). O agente “instrumento”, em qualquer uma dessas situações, mata a pessoa por determinação do superior, que deve ser responsabilizado penalmente.

A polêmica que existe versa sobre se esse superior seria autor mediato, co-autor ou indutor. Na primeira edição do nosso livro “Direito penal-PG”, v. 2 (São Paulo: RT, 2007) nossa inclinação era em favor da co-autoria (o superior seria co-autor intelectual enquanto o inferior seria co-autor executor). A questão, no entanto, merece novas reflexões.

Para a adequada compreensão do tema impõe-se preliminarmente distinguir a criminalidade organizada estatal da não estatal. Exemplos da primeira: nazismo, Carandiru, etc. Exemplos da segunda: PCC (Primeiro Comando da Capital), Comando Vermelho, máfias, etc.

Na primeira há uma ordem dada por um superior (que determina a morte de um terceiro). Quando a ordem é não-manifestamente ilegal, aplica-se o artigo 22 do Código Penal: quem deu a ordem é autor mediato e quem a cumpriu é agente instrumento. Só responde pelo delito, nesse caso, o superior. O inferior é absolvido pela inexigibilidade de conduta diversa ou pelo erro de proibição.

Quando a ordem é manifestamente ilegal, tanto o superior quanto o inferior respondem pelo delito. O superior seria autor mediato (posição de Roxin), indutor (posição de Herzberg) ou co-autor (posição de Jakobs)?

Na segunda hipótese (criminalidade não estatal) há uma coação moral (determinação). Quando a coação moral é irresistível, aplica-se o artigo 22 do Código Penal: quem coagiu é autor mediato e quem foi coagido é agente instrumento. Só responde pelo delito, nesse caso, o superior – o autor da coação. O coagido é absolvido pela inexigibilidade de conduta diversa.

Quando a coação é resistível, os dois, coator e coagido, respondem pelo delito. O autor da coação seria autor mediato (posição de Roxin), indutor (posição de Herzberg) ou co-autor (posição de Jakobs)?

O tema mereceu a análise de Claus Roxin (“Problemas de autoria y participacion en la criminalidad organizada”, em Revista Penal, n.º 2, Editorial Práxis S.A., em colaboração com as Universidades de Huelva, Salamanca e Castilla-La Mancha), que iniciou afirmando as duas características comuns presentes em ambas as hipóteses de criminalidade organizada: (a) a intercambialidade do agente instrumento (qualquer integrante do grupo organizado pode ser o executor ou autor imediato do delito) e (b) o “agente de trás” tem o domínio organizacional do fato (ou seja: domina a organização criminosa).

Em seguida o autor citado apresenta suas razões para não se admitir a tese de Jakobs (consistente na co-autoria). O agente de trás (o autor mediato) não é co-autor (diz Roxin) por três motivos: (a) porque no caso de uma organização criminosa não existe uma decisão delituosa comum (não há uma resolução conjunta, que é a marca distintiva da co-autoria).

O “chefe” dá a ordem, mas não delibera o delito de forma conjunta; (b) porque a decisão não é tomada no mesmo nível, tal como ocorre na co-autoria; ao contrário, a decisão ocorre nos escalões superiores da organização; (c) a estrutura da co-autoria, como se vê, é horizontal, enquanto a estrutura da organização crimi,nosa é vertical. Por todas essas razões não se pode afirmar a tese da co-autoria (defendida por Jakobs). O agente de trás (que deu a ordem) é autor mediato, não co-autor.

O agente de trás, de outro lado, tampouco é indutor (partícipe, como afirma Herzberg). Por quê? Pelo seguinte: (a) numa organização criminosa o que existe é uma “ordem” (uma coação moral), não uma mera sugestão ou uma idéia delitiva (que é típica da indução); (b) na organização criminosa quem dá a ordem é um superior hierárquico, ou seja, existe uma relação de hierarquia; isso não ocorre na indução, isto é, não existe relação de hierarquia na participação por indução; (c) na organização criminosa a relação, como se vê, é vertical (de cima para baixo); no induzimento a relação é horizontal (indutor e executor estão em pé de igualdade); (d) na organização criminosa quem dá a ordem tem o domínio organizacional do fato; na indução quem induz não tem o domínio do fato; (e) quem comanda (quem dá a ordem) na criminalidade organizada participa de fato próprio; o indutor participa de fato alheio; (f) o fato de quem deu a ordem é principal; a participação por indução é sempre acessória; (g) quem tem o domínio do fato é sempre autor (ou co-autor), não mero partícipe; quem induz é mero partícipe de um fato alheio; (h) contraria a lógica dos conceitos (a natureza das coisas) afirmar que quem deu a ordem é mero partícipe (ele, na verdade, é autor, aliás, mediato); (i) o indutor necessita encontrar o autor (ter contato com ele, convencê-lo do delito, vencer suas resistências etc.); o agente de trás (ou seja: o autor mediato), nas organizações criminosas, só necessita dar a ordem (que será cumprida por algum subordinado, totalmente intercambiável); (j) o executor, na organização criminosa, é intercambiável; no induzimento o executor é singular (necessita ser individualizado, convencido, etc.); (k) no induzimento o indutor necessita ter contato direto com o executor; na organização criminosa esse contato dificilmente acontece.

Por todas as razões expostas vê-se que estamos diante do instituto da autoria mediata (essa é a posição de Roxin, que estamos acompanhando). Uma última observação importante desse autor diz respeito à autoria mediata sucessiva, que ocorre quando um primeiro superior (comandante) passa a ordem para um segundo que a retransmite ao executor. Nesse caso temos dois autores mediatos (superiores) e um executor (inferior).

Em regra, na autoria mediata, o único responsável pelo delito é precisamente o autor mediato (que tem o domínio sobre a vontade alheia). O agente instrumento acaba sendo utilizado pelo agente de trás (para realizar, para este último, o delito).

Essa regra comporta pelo menos duas exceções: (a) quando o agente instrumento atua com culpa e (b) quando o agente instrumento atua (também) com dolo, mas dentro de uma estrutura de poder (dentro de uma organização criminosa). Fora dessas exceções, o único responsável pelo delito na autoria mediata é justamente o autor mediato.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan – Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais – www.lfg.com.br