Supremo Tribunal Federal versus Congresso Nacional

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de duas ações que chamaram a atenção em um aspecto comum: a mais alta Corte do Judiciário brasileiro demonstra claramente uma tendência em abandonar sua função tradicional de legislador negativo, cuja atuação se limita em controlar (afastar) os atos normativos contrários ao texto constitucional.

Essa nova tendência ganha relevo peculiar nos casos em que o Legislativo deixa de regulamentar mandamento constitucional e, ao mesmo tempo, os remédios trazidos pela Constituição para o controle de tais omissões se demonstram ineficazes.(1)

Na primeira das decisões, discutia-se a ausência de norma regulamentando o direito de aposentadoria especial dos servidores públicos (art. 40, § 4.º, III). Tal omissão, a princípio, impedia, por exemplo, a aposentadoria de uma servidora pública que trabalhou durante vinte e cinco anos em atividade considerada insalubre. No caso concreto, o STF determinou a aplicação das disposições que tratam da matéria perante o Regime Geral de Previdência (Lei 8.213/91, art. 57), possibilitando, por conseqüência, o exercício do direito fundamental à aposentadoria.(2)

Na segunda, a Corte resolveu problema que já se estendia por quase duas décadas: o exercício de greve no serviço público que, segundo o art. 37, VII, da Constituição Federal, deve ser regulamentado por lei específica. Diante da omissão legislativa, o STF decidiu estender ao serviço público, no que couber, as regras que se aplicam às paralisações da iniciativa privada, regulamentadas pela Lei n.º 7.783/89.(3)

Em ambos os casos, o que se viu foi a utilização clara das chamadas sentenças aditivas, com ampla divulgação na Itália.

Na verdade, na Itália, a autonomia dada à Corte Constitucional é maior, cogitando-se a utilização de quatro espécies de decisões que formam as sentenças modificativas. São as (a) sentenças exortativas (sentenze comandamento), (b) sentenças interpretativas (sentenze interpretative), (c) sentenças aditivas (sentenze additive) e (d) sentenças substitutivas (sentenze sostitutive).(4)

Pelas sentenças exortativas, a Corte declara a inaplicabilidade da lei impugnada e, ao mesmo tempo, mantém sua eficácia até que o legislador reforme o texto tido como inconstitucional.

Nas sentenças interpretativas, mantém intocado o texto normativo em exame, afastando (=declarando a nulidade) as interpretações contrárias à Constituição.

As sentenças aditivas, por outro lado, atuam nas situações de omissão do Legislativo. A inconstitucionalidade da norma é declarada não pelo que contém, mas pelo que deixou de conter. Nesses casos, a Corte cria regras para suprir tal omissão e possibilitar a aplicabilidade da norma constitucional em questão.

Por fim, as sentenças substitutivas têm lugar nos casos em que a Corte julga inconstitucional determinada norma de modo a criar um vácuo legislativo que ameace a segurança jurídica ou a ordem social. Nesses casos, ou preenche-se temporariamente esse vazio mantendo em vigor a própria lei declarada inconstitucional, ou, quando isso não é possível, fixa-se nova regra em substituição àquela afastada, já orientando o Parlamento para futura regulamentação.

Analisando alguns julgados do Supremo Tribunal Federal brasileiro, já é possível constatar as três primeiras técnicas de decisão utilizadas amplamente na Itália.

Na primeira (sentença exortativa), por exemplo, o STF declarou inconstitucional a Lei n.º 7.619/2000, do Estado da Bahia, que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães, decorrente do desmembramento do Município de Barreiras. Embora contrária ao disposto pelo art. 18, § 4.º, da CF, utilizando-se da técnica da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade (Lei n.º 9.868/99, art. 27), o Min. Gilmar Mendes propôs a manutenção da vigência da norma estadual por 24 meses, período considerado razoável para que o legislador federal aprove a lei complementar que se refere o mencionado art. 18, § 4.º, da CF/88, possibilitando, com isso, a reapreciação do tema pelo legislador estadual.(5)

A segunda (sentença interpretativa) não é novidade nenhuma no STF, que há muito afasta interpretações extraídas de um texto normativo contrárias à Constituição. Trata-se da utilização da chamada declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung). Nesses casos, segundo o Min. Gilmar Mendes, há expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal.(6) Assim, dentre outros casos, o STF afastou qualquer interpretação que inclua no âmbito de compreensão da Lei Complementar n.º 87/1996 (que fixa normas gerais referentes ao ICMS) a prestação de serviços de navegação ou transporte aéreo.(7)

A novidade reside justamente na terceira sentença apontada (aditiva). Como visto, por duas oportunidades o STF já utilizou tal providência, sanando omissão legislativa acerca da aposentadoria especial e direito de greve dos servidores públicos.

Nesses casos, porém, tais decisões devem se pautar em premissa obrigatória. É que a solução dada pelo Judiciário não pode ser fruto de uma valoração discricionária, em que a Constituição abre um leque de alternativas ao legislador. Sua atuação deve ser limitada a partir de uma extensão logicamente necessária e às vezes até implícita. Tal como ressaltado pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do citado MI n.º 670, as sentenças aditivas só têm lugar quando integram ou complementam um regime previamente adotado pelo legislador ou, ainda, quando a solução adotada pelo Tribunal incorpora uma solução constitucionalmente obrigatória, em que mesmo o legislador não poderia seguir parâmetro diverso.

O fato é que, aos poucos, percebe-se claramente que o Supremo Tribunal Federal vem reformulando o dogma do legislador negativo, avançando em águas até então desconhecidas pelo Judiciário. Tal papel, sem dúvida, iniciou pelo então Min. Moreira Alves, e vem cada vez mais ganhando força com a atuação de seu sucessor Min. Gilmar Ferreira Mendes.

Notas:

(1)    No Brasil, a Constituição de 1988 trouxe dois meios típicos de controle das omissões estatais: o mandado de injunção (art. 5.º, LXXI) e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2.º). Ambos possuem a mesma característica quanto aos efeitos da decisão: simplesmente declaram a mora do Congresso Nacional, sem, contudo, fixar qualquer critério quanto ao conteúdo da matéria a ser regulamentada.

(2)     STF, MI n.º 721, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 14/11/2007.

(3)     STF, MIs n.º 670 e 708, Rel. Min. Gilmar Mendes, e MI n.º 712, Rel. Min. Eros Grau, DJU 14/11/2007.

(4)     Cf., na Itália, Fausto Cuocolo, Principi di diritto constituzionale, Milano: Giuffrè, 1996, p. 755 e s. e Augusto Cerri, Corso di giustizia costituzionale, 4.ª ed., Milano: Giuffrè, 2004, p. 215 e s. Em Portugal, v. Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica, 1999, passim.

(5)     STF, ADI n.º 2240, Rel. Min. Eros Grau, DJU 23/8/2007.

(6)     Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição constitucional, 4.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 324.

(7)     STF, ADI n.º 1600, Min. Rel. Sydney Sanches, DJU 6/2/1998.

Fábio Rodrigo Victorino é advogado. E-mail: frvictorino@uol.com.br

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