Alguns aspectos da lógica e da informática jurídicas

Tecemos algumas considerações sobre a lógica e a informática jurídicas, evidenciando como certas técnicas, como a teoria clássica do silogismo e a lógica paraconsistente, podem ser utilizadas em Direito. Porém, observamos que a lógica da Ciência do Direito parece ser a clássica. As idéias aqui apenas esboçadas serão desenvolvidas em trabalhos futuros. Tecemos esclarecimentos sobre a teoria do silogismo e do raciocínio jurídico. Esboçamos os primeiros delineamentos de uma possível automação de uma sentença judicial fundamentada no Cáculo Cw de Newton da Costa e no Teorema de Herbrand, em uma espécie de linguagem Prolog paraconsistente. Para o desenvolvimento da idéia será necessária a composição de equipe multidisciplinar.

1. Sobre direito e sentença

O justo, nas decisões forenses, implica nos decantados problemas inerentes ao próprio conceito de que seja o Direito: verdade e verossimilhança, certeza e incerteza como pressupostos expressos pelo princípio do contraditório e, aliada à vontade do conhecimento, a liberdade argumentativa e a retórica, fazem os liames no qual medra o discurso.

Evidentemente a questão se agrava quando acrescida das reflexões sobre a efetividade e a segurança com que são conduzidas as ações e proferidas as decisões. Ao que parece, a analogia entre justiça e verdade é argumento patente no mundo do Direito e, assim, aproximamo-nos da Lógica.

Mas qual é a lógica do Direito? Se nos restringirmos ao processo veremos que as peças juntadas aos autos por uma e pela outra parte são, via de regra, respectivamente, afirmação e negação de um mesmo fato. Se nos referirmos ao Direito no contexto maior que é a realidade social teremos mais fortemente, na sua composição, as tintas das paixões, as emoções do espírito e todos os paradoxos que caracterizam o que se costuma denominar de condição humana. Fato é que existem espaços de incertezas, indeterminações e inconsistências na ?matéria-prima? – realidades humana, social e mesmo processual – do Direito e, ao mesmo tempo, coexistem ?regras de certeza e determinação? (em que pese a carga triplamente pleonástica dessa expressão). Em outras palavras, em se tratando do Direito, podemos conjecturar sobre lógicas clássica e não-clássicas. Entre essas últimas, vamos nos ater, nos próximos parágrafos, à Lógica Paraconsistente (ver Da Costa(1)).

A presença de contradições entre proposições em um sistema lógico-clássico, torna-o inconsistente. Se diferentemente, forem admitidas contradições, o sistema inconsistente é trivial e nele qualquer idéia ou coisa pode ser dedutível, porém sem embasamento de verdade ou ciência.

A idéia geral da Lógica Paraconsistente é estudar os sistemas inconsistentes de maneira direta, por meio da estruturação de novos tipos de lógica, elementar ou não, que tornam então viável a manipulação dos sistemas inconsistentes. Fica derrogado, assim, o princípio da contradição.

Há estruturas sintáticas e semânticas bem constituídas, quanto à dedutibilidade e à prova, construídas pela Lógica Paraconsistente.

Existem graus amplos de liberdade e segurança na Lógica Paraconsistente, tão imensos quanto for a capacidade de raciocinar logicamente, vale dizer: com clareza, precisão, objetividade, demonstrabilidade, coerência e pertinência, no âmbito teórico e prático, neste caso, do Direito, de modo a contribuir para aclarar o emaranhado contextual em que, geralmente, as questões contraditórias reclamam soluções pretorianas.

Existem detalhes sintáticos da Lógica Paraconsistente, cujos cálculos servem de base à construção de várias teorias paraconsistentes. Dentre os diferentes suportes lógicos aplicáveis às questões jurídicas, pode-se destacar, por exemplo, além da Lógica Paraconsistente, a Lógica Paracompleta, sendo esta aplicável a situações futuras e incertas, o que é particularmente interessante para o Direito, em virtude das contingências advindas no processo judicial.

A Lógica Paraconsistente relaciona-se com contradições, enquanto a Paracompleta, com lacunas. Uma lógica simultaneamente Paraconsistente e Paracompleta acha-se voltada tanto a contradições, como a lacunas.

O objetivo central da Lógica Paracompleta, por seu turno, é o de poder tratar de proposições contraditórias como sendo ambas falsas. Em outras palavras, atende-se à possibilidade de existirem lacunas nos contextos com os quais lidamos. A motivação da Lógica Paracompleta está relacionada ao fato de que, entre duas proposições contraditórias, não é requisito necessário que uma seja verdadeira e a outra falsa; isso seria negligenciar possibilidades intuitivas. Para a Lógica Paracompleta, entre duas proposições futuras e incertas, é admissível que ambas venham a ser verdadeiras, ou ambas falsas.

De um modo geral, a Lógica Paracompleta pode ser concebida como a lógica subjacente a teorias incompletas, como o Direito, haja vista a formulação de linguagens paracompletas hierarquizadas, com extensões, complementações e predicações (a partir de propriedades Booleanas) desenvolvidas e cabalmente demonstradas. Fica derrogado, assim, o princípio do terceiro-excluso.

É certo que se pode construir sistemas lógicos que sejam ao mesmo tempo paraconsistentes e paracompletos, que podem ser exitosamente empregados em problemas que envolvam questões de vaguidade e incerteza, como ocorre em boa parte dos problemas a serem solucionados no âmbito jurisprudencial, pela admissão dessas lógicas não-aléticas. Assim ficam derrogados, simultaneamente, os princípios de contradição e terceiro-excluso.

Reinventada e revitalizada pela plasticidade e coerência oportunizadas pelas Lógicas Paraconsistente e Paracompleta, a teoria jurídica, com efeito, pode acrescer-se na instrumentalização das questões que a história e o futuro impõem.

No caso do Direito, que se constitui de um espectro que abrange componentes consuetudinários, jurisprudenciais, legais e sociológicos sobre os quais se assentam as decisões, é interessante dispor do instrumental lógico hábil ao manejo desses elementos, para um resultado desembaraçado de inconsistências, contradições ou trivialidades, já que é preciso sintetizá-los em um único processo decisório.

Neste trabalho, que é o primeiro de uma série de estudos sobre Lógica e Direito, bem como sobre a sua informatização, a discussão que ora encetamos se inicia pelas principais características, sob o ponto de vista lógico, da sentença judicial.

Assim sendo, nesta seqüência de estudos, a expressão ?sentença judicial? deverá ser entendida em sua estrutura básica (cujos elementos são, comumente, o preâmbulo, o relatório, a motivação ou dispositivo e, por fim, a decisão, nos termos do artigo 458 e seguintes do Código de Processo Civil). Portanto, as considerações tecidas são aplicáveis genericamente a sentenças de quaisquer foros e instâncias; e de modo específico, a sentenças cíveis do primeiro grau de jurisdição. Por ora, não se adentrará a detalhes da tipologia, classificações e exceções à regra formal da estrutura das sentenças de sorte que, de momento, fixar-nos-emos ao modelo padrão. As variações serão oportunamente comentadas.

E por que escolhemos tratar, já de início, as questões lógicas da sentença judicial? Porque a sentença, pode-se considerar, resume o fato no qual culmina o direito, vale dizer, é a juris dictio ou a efetiva prestação jurisdicional. Desde o início da lide, passando-se por todas as fases processuais, vê-se formar a composição inteligente que redundará na decisão, como um resultado final objetivo.

Mas a constituição da sentença, como de conhecimento cediço, não é assunto pacífico. Ao mesmo tempo em que deve ser clara, certa e referir-se à materialidade dos autos, deve pautar-se pelos princípios gerais do Direito, pelas suas fontes e pela hermenêutica. Sobretudo, ao magistrado é assegurada a faculdade de decidir conforme a sua livre convicção e arbítrio, de acordo com o Direito e a justiça. Destarte, vemos que há uma variada gama de elementos constitutivos da sentença e que, nesse contexto, emerge fortemente a questão da segurança jurídica, que vimos nos primeiros parágrafos desta comunicação.

No caso específico da sentença ou decisium, a segurança jurídica vem sendo respaldada, em parte, pelo silogismo, que pode ser entendido como uma figura lógica na qual a conclusão se segue de duas premissas que relacionam os termos da conclusão a um terceiro termo, chamado ?termo médio?. Na doutrina silogística, não há unanimidade entre a interpretação dos termos ?maior?(T) e ?menor? (t). Não é nosso propósito, desta feita, descermos às minúcias desse detalhe.

Há regras relativas aos termos de um silogismo, por exemplo: na conclusão, os termos não podem ter extensão maior do que nas premissas; e todo silogismo contém somente três termos.

Há várias figuras e modos de silogismos, principalmente formas de redução a silogismos. Assim sendo, composições complexas de argumentos podem – e de fato o são – reduzidas a formações silogísticas. É o caso da sentença judicial.

Não cabe agora, por brevidade, adentrarmos às formas derivadas de silogismos, que seriam as construções silogísticas que se concatenam, formando um agrupamento maior de argumentos seqüenciais (vale dizer, o inverso da simplificação ou redução a silogismo, mencionada no parágrafo acima). Cite-se apenas, como ilustração, os epiqueremas, polissilogismos, sorites, silogismos hipotéticos e dilemas, dentre outros, como derivações silogísticas complexas de conhecimento comum.

A logicidade dessas construções é, podemos dizer, irresistível à razão. Por isso é inegável a sua proximidade com determinados conceitos usualmente empregados, como verdade, verossimilhança e portanto com uma certa idéia de segurança no Direito, na qual tem se conformado a estruturação da sentença.

Tradicionalmente, o método pelo qual se desenvolve o raciocínio jurídico é silogístico: tanto o advogado, ao elaborar a petição inicial; como o promotor, na formação da denúncia e também o juiz, na prolação da sentença, via de regra fazem uso de enunciados silogísticos. Inclusive, a grande maioria das publicações que visam a fornecer instruções a respeito da estrutura e da redação das peças processuais, geralmente ilustradas por ?modelos?, atendem às formas silogísticas. Por conseguinte, o exame dos autos em cartórios e tribunais, quanto mais farto for, mais fortemente corroborará esta tese. Vale dizer: a mentalidade jurídica em nosso país adota, via de regra, nas peças processuais configuradas como ?sínteses? do raciocínio jurídico, o silogismo.

Ora, diante desta constatação e em consonância com as idéias apresentadas nos parágrafos precedentes deste texto, podemos concluir que, no pensamento jurídico, de fato coexistem, de modo genérico, diferentes sistemas lógicos, clássico e não-clássicos ou, mais especificamente, estruturas silogísticas, paraconsistentes e paracompletas.

Na próxima seção examinaremos como se pode logicizar a sentença judicial, na sua estrutura silogística, com vistas à informatização. Todavia, é importante ressaltar, desde logo, que a proposta que adiante se delineia não obnubila ou interfere na atividade judicante; mas ao contrário, pretende com ela colaborar. A prerrogativa concedida por lei ao juiz, de apreciar livremente aspectos materias e processuais de cada caso, de acordo com o seu convencimento, é um aspecto essencial dos conceitos de Direito e de justiça – e, portanto de segurança do Direito e da Justiça – em suas mais amplas acepções.

2. Lógica, informática e sentença

Ao se prolatar uma sentença ou ao se edificar um código jurídico, há uma grande margem de imprecisão e de vaguidade.

Portanto, a análise lógica de um texto jurídico, com o objetivo de formalizá-lo, digamos com vistas à sua informatização, faz-se por etapas.

Em primeiro lugar vem a interpretação, por meio da qual se procura entender, de fato, o contexto que se considera. Em seguida, vem a rigorização: reformula-se, ainda na linguagem usual, mas de modo rigoroso, o que resultou da primeira fase. Finalmente, chega-se à formalização: recorre-se a uma linguagem simbólica e formal da lógica para se redigir a versão formalizada do que se obteve nas duas etapas precedentes.

Obtém-se, então, a formalização do texto (ou contexto) original, com o qual se pode trabalhar lógica e formalmente.

Tal modo de proceder é essencial sempre que se tem em mente o tratamento lógico-formal de um tópico qualquer. É o que ocorre, por exemplo, no tocante à informatização em Direito.

Como já se viu, as sentenças jurídicas, normalmente, reduzem-se a silogismos. Assim, se temos em mira a formalização, não podemos nos esquecer do silogismo; em particular, de sua formalização, tendo-se em mente suas aplicações jurídicas. Esta é uma questão que nos interessa sobretudo. E é de se notar que o silogismo final de uma sentença sensata é puramente clássico, ou seja, segue os cânones da lógica clássica.

Dois outros problemas que ocorrem em Direito, como já notamos, são os das inconsistências e das lacunas jurídicas. Aqui nos ocuparemos, unicamente, das inconsistências ou contradições em Direito.

Uma inconsistência ou contradição é um par de proposições, uma das quais é negação da outra (ou, o que dá no mesmo, a conjunção de duas proposições desses tipos). É claro que o significado de uma contradição depende da lógica que se utilize. Assim, na lógica clássica, de uma contradição pode-se deduzir qualquer proposição (qualquer contradição trivializa uma teoria ou sistema teórico em que ela figure como demonstrada). O mesmo não ocorre com as lógicas paraconsistentes, como se sabe.

Aqui vamos delinear como as inconsistências podem ser tratadas em determinado sistema de lógica paraconsistente. Para isso supomos que o leitor possua certo conhecimento de lógica, em particular da lógica paraconsistente.

Partamos do cálculo Cw (cf. Da Costa(2)). O que nos interessa aqui é analisar a questão do prisma da informática.

Cw é um cálculo de predicados da primeira ordem, no qual a negação satisfaz os princípios de dupla negação (a dupla negação de uma proposição implica essa proposição) e o terceiro excluído; os outros conectivos e os quantificadores satisfazem os postulados da lógica de predicados intuicionista positiva (se considerarmos, em vez desta ultima, a lógica positiva clássica, dá no mesmo).

Em vez de tratarmos de Cw em sua totalidade, restringir-nos-emos a elaborar uma lógica de cláusulas parcial. Basta que definamos a noção de cláusula utilizando-se uma noção de literal generealizada: um literal é uma fórmula atômica ou uma fórmula atômica precedida de qualquer número de negações.

 Então, se identificarmos um literal qualquer com um número fixo de negações como uma nova fórmula atômica (via novo símbolo de predicado), advém uma concepção nova do que se entende por literal; se convencionarmos que a qualquer cláusula estão adicionadas as condições que refletem os dois postulados da negação em Cw, verifica-se que a teoria clássica das cláusulas se aplica (o cálculo em apreço deve conter símbolos funcionais). Logo vale o teorema de Herbrand etc. (ver, por exemplo, Casanova et alii(3)).

Em síntese, há uma lógica de cláusulas associada a Cw e uma espécie de Prolog paraconsistente.

Não obstante, tal lógica não envolve Cw todo, mas, como é óbvio, apenas uma parte do mesmo.

Quanto ao silogismo, sua teoria é parte do cálculo monádico de predicados clássico. Ademais, esta teoria é decidível (ver Hilbert & Ackermann(4)). Em conseqüência, a informatização do silogismo não oferece qualquer dificuldade (além disso, a teoria é tão simples, que praticamente não se necessita de nenhuma análise mais profunda para formalizá-la).

Em resumo, o tratamento formalizado e a informatização do Direito, mesmo em casos em que se necessite de instrumentos lógicos heterodoxos, é possível. Em particular, a obtenção de conseqüências de sistemas (ou códigos) jurídicos via a prova automática de teoremas é realizável.

No tocante a outras lógicas paraconsistentes, como a anotada, isso é inteiramente óbvio (por meio dos trabalhos de Subrahmanica, Blair, Da Costa, Akama e outros; ver, por exemplo, Abe(5)).

Mas tal uso da lógica, em Direito, não deve ser confundido com a utilização da lógica para fundamentar as teorias jurídicas(6). Não há dúvida de que, no primeiro caso, temos de recorrer a lógicas não clássicas, como instrumento de trabalho; porém, no segundo, ainda não se tem prova completa de que seja necessária outra lógica que não a clássica.

3. Conclusão

Vimos neste trabalho que, apesar de todo o desenvolvimento do raciocínio jurídico e da sua argumentação, a base para a formulação das proposições jurídicas, inclusive da sentença judicial, continuam sendo silogísticas ou, pelo menos, podem ser interpretadas dessa maneira. Estamos nos referindo às bases, ou seja, às origens sobre as quais se assenta a concatenação de toda a sofisticada argumentação do Direito, portanto, de modo algum estamos sendo reducionistas ou simplistas.

Vimos também que, diante do avanço da tecnologia, é possível a criação de procedimentos efetivos que possam colaborar com o avanço e com a celeridade no Direito, ressalvadas a liberdade de pensar e de interpretar, pois a nossa proposta, fundamentada no cálculo de Da Costa e no teorema de Herbrand, assegura graus de liberdade e inventividade humanas, sem as quais não se pode cogitar em Direito e em Justiça.

4. Referências

ABE, J. M., editor, Anais do Primeiro Congresso de Lógica Aplicada à Tecnologia, São Paulo: SENAC, 2000.

CASANOVA, Marco A.; GIORNO, Fernando A. C.;FURTADO, Antonio L. Programação em Lógica e a Linguagem Prolog. São Paulo: Editora Edgard Blücher Ltda, 1987.

DA COSTA, Newton C. A. Sistemas Formais Inconsistentes. Curitiba: Editora da UFPR, 1993.

HILBERT, D.; ACKERMANN, W. Principles of Mathematical Logic. Chelsea: [s.l.], 1950.

Notas

(1) DA COSTA, Newton C. A. Sistemas Formais Inconsistentes. Curitiba: Editora da UFPR, 1993.

(2) Idem, ibidem

(3) CASANOVA, Marco A.; GIORNO, Fernando A. C.; FURTADO, Antonio L. Programação em Lógica e a Linguagem Prolog. São Paulo: Editora Edgard Blücher Ltda, 1987.

(4) HILBERT, D.; ACKERMANN, W. Principles of Mathematical Logic. Chelsea: [s.l.], 1950.

(5) ABE, J. M., editor, Anais do Primeiro Congresso de Lógica Aplicada à Tecnologia, São Paulo: SENAC, 2000.

(6) Tencionamos desenvolver as idéias deste artigo em trabalhos futuros.

Agradecemos ao Professor Newton C. A. da Costa e ao Grupo de Lógica do Departamento de Filosofia da USP as discussões mantidas conosco sobre os temas deste artigo.

Maria Francisca Carneiro é doutora em Direito, mestre em Educação, bacharel em Filosofia. Pós-doutoranda em Direito e em Filosofia. mfrancis@netpar.com.br

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