O legado de Miguel Reale

Miguel Reale(1) morreu. Suas idéias não.

O Culturalismo Jurídico, ao qual se filia Reale, ao lado de juristas como Emil Lask, Carlos Cossio e Recaséns Siches, promove três construções teóricas importantíssimas para a Moderna Teoria do Direito.

Em primeiro lugar, o Culturalismo Jurídico vale-se da distinção kantiana entre natureza, valor e cultura, conforme destaca Paulo Dourado de Gusmão(2). A partir dessa classificação, a Escola Culturalista situa o Direito, de uma vez por todas, no campo da cultura, na medida em que se trata de um objeto construído pelo espírito humano e não, como criam os Jusnaturalistas, uma realidade preconstituída ao homem. Assim, na lição de Luiz Fernando Coelho(3), outro mestre da Propedêutica Jurídica, o Culturalismo Jurídico acentua ?o fato de ser o direito alguma coisa que existe na história e que se incorpora àqueles outros objetos criados pela atividade espiritual e dotados de um sentido de conteúdo valorativo, tais como as obras de arte e as conquistas da ciência, e a cujo conjunto se denomina cultura?.

Em segundo lugar, o Culturalismo Jurídico inaugura uma metodologia, a fim de se adaptar a essa nova localização epistemológica do Direito no continente da cultura. É neste sentido que Tercio Sampaio Ferraz Jr.(4) observa que a Escola Culturalista desenvolve ?uma metodologia própria, de caráter dialético, capaz de dar ao teórico do direito os instrumentos de análise integral do fenômeno jurídico?.

Em terceiro lugar, por derradeiro, o Culturalismo Jurídico descortina dois planos de investigação em seus objetos: o plano do suporte e o plano do sentido. O primeiro (plano do suporte), no dizer de Maria Helena Diniz(5), ?é sua matéria?, ou seja, a dimensão concreta do objeto físico, empiricamente observável pelos sentidos. O segundo (plano do sentido), no ensinamento de Carlos Cossio(6), ?é a intenção objetivante que, como conhecimento do expressado pelo substrato, tem o sujeito cognoscente que conhece o objeto cultural?, ou seja, a representação interacionista entre objeto observado e sujeito observador, na qual este atribui um valor ou um desvalor àquele, a exemplo da pedra de mármore, extraída do rochedo, em seu estado bruto, que representa o suporte ou substrato sobre o qual o artista agrega sentido, com o seu cinzel, ao lapidar a escultura.

No feixe desses três postulados culturalistas, há quatro desdobramentos: (a) a Escola de Emil Lask; (b) o Raciovitalismo Jurídico, corrente desenvolvida por Recaséns Siches; (c) o Egologismo Jurídico, corrente elaborada por Carlos Cossio; e (d) a Teoria Tridimensional do Direito, intuída por Miguel Reale.

Em relação à filosofia de Emil Lask, seu mérito foi o de burilar uma teoria do Direito que reunisse, ao mesmo tempo, a abstração cósmica, desenvolvida pelos apóstolos do Direito Natural, com a dimensão histórica, defendida pelos historicistas.

Em relação ao Raciovitalismo Jurídico, Recaséns Siches, fortemente influenciado por Ortega y Gasset, aplica a teoria da Razão Vital, de matriz orteguiana, ao fenômeno jurídico. Assim, na concepção de Siches, a norma jurídica revive toda vez que é aplicada, na intersecção dialética entre a realidade e o Direito, de acordo com a lógica do razoável.

Em relação ao Egologismo Jurídico, Carlos Cossio se destaca pela concepção de que o Direito é um objeto cultural, cujo suporte é a conduta humana em interferência intersubjetiva e cujo sentido é o dever de realizar um valor. Embora esteja agasalhado sob a mesma redoma teórica da teoria tridimensional, o Egologismo Jurídico foi alvo de severas críticas de Miguel Reale que apontou fissuras na teoria de Cossio. Segundo Reale(7), existem relações jurídicas que não estão imanentes às relações sociais o que ?serve, aliás, para demonstrar o redondo equívoco dos que reduzem o Direito à conduta, como pretende Cossio?.

Em relação à Teoria Tridimensional do Direito, a abordagem do já saudoso Professor Miguel Reale pode iniciar com uma indagação: qual é a matéria prima do Direito? Os sociólogos dirão: os fatos. Os filósofos responderão: a Justiça. Os juristas objetarão: as normas. Miguel Reale concilia essa discrepância. A teoria realeana reformula o conceito de o que é Direito. Não é só fato, como pretendem os sociólogos. Não é só valor, como querem os filósofos. Não é só norma, como proclamam os juristas. Não é nada disso isoladamente. Mas, paradoxalmente, é tudo isso, ao mesmo tempo, centrifugado numa síntese integradora dialética, que estabelece uma permanente tensão polar entre as três dimensões do Direito: fato, valor e norma. Essa síntese integradora dialética, como foi chamada por Miguel Reale, representa uma força de atração e uma força de repulsão: de um lado, a força de atração é suficientemente forte para enlaçar reciprocamente as três dimensões do direito, umas às outras; de outro lado, a força de repulsão é satisfatoriamente medida para evitar que essas três dimensões se confundam, sem se separarem.

É por esse poliedro tridimensional que Miguel Reale convidou a comunidade científica a observar o fenômeno jurídico. O convite foi aceito. Pena que o anfitrião foi embora…

Notas:

(1)     *Miguel Reale (1910-2006).

(2)     GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 393.

(3)    COELHO, Luiz Fernando. Teoria da Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 60.

(4)     FERRAZ JR, Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 38.

(5)     DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 132.

(6)     COSSIO, Carlos. Teoria Egológica del Derecho y El Concepto Jurídico de Libertad. Buenos Aires, 1964, p. 63.

(7)     REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 215.

Adriano Sérgio Nunes Bretas é advogado Criminal em Curitiba, especialista em Direito Penal e Criminologia, professor de Processo Penal, membro do Grupo Brasileiro da Association Internationale de Droit Pénal.

Voltar ao topo